Guarulhos, 15 de abril de 2023.
Luzimar Soares*
Vó Rita guardava tanto amor no peito! Também tinha mesmo o coração grande e só descobriu isto depois de moça. Um dia passou mal, o patrão era médico, exame para lá, exame para cá, ficou explicado por que, às vezes, ela se cansava tanto. Havia dias em que o coração parecia lhe querer sair pela boca. O médico disse-lhe que ela viveria pouco. Enganou-se. Lá estava ela, velha, mais de 70, de 80 talvez. Vó Rita era imensa. Gorda e alta. Tinha um vozeirão. Todo mundo sabia quando ela estava para chegar. Vivia falando. Nunca vi Vó Rita calada. Se não conversava, cantava. Boca fechada não entra mosquito, mas não cabem risos e sorrisos.
Conceição Evaristo – Becos da Memória.
Existe em mim uma urgência de falar sobre a mulher na sociedade, mas especificamente na brasileira. Quando olhamos a realidade de ainda em 2023, termos tramitando no Congresso Nacional duas leis que tratam de obrigar as empresas a remunerarem seus funcionários de maneira igualitária, sabendo que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 isso já está previsto lá, percebe-se que o caminhar é longo, é cruel e o pior é invisibilizado por discursos que dizem que isso não é verdade.
Muitas profissões são regulamentadas e por isso, o salário base é sempre igual, todavia, dependendo da categoria, cálculos de variáveis acabam por deixar as remunerações finais diferentes, os PLs referidos acima estão sob os números 111/23 e 1558/21[1], sendo que este último, tramita em regime de urgência. Bom se já está na Constituição, qual a necessidade de mais Leis para o mesmo assunto? Bom porque na realidade, aquilo que está na mais Cidadãs das nossas Cartas Magnas, não é cumprido pelos empregadores.
A questão salarial é de suma importância, haja vista, muitos dos lares brasileiros serem geridos por mulheres, todavia, a invisibilidade das mulheres ou, a subjugação do papel feminino está em todos os lugares. Já falei algumas vezes aqui sobre a questão feminina e a forma como somos relegadas a papeis secundários, um dos lugares que mais me incomodam é justamente o lugar da escrita.
Sobre o assunto da escrita também já me pronunciei, no entanto, quanto mais pesquiso essa seara mais percebo o quanto as mulheres brasileiras foram e continuam sendo relegadas ao pano de fundo, ao lugar do suporte e da organização, a ser a que fica por trás dos grandes homens, mas que não deve aparecer, uma “boa” mulher deve ficar nas sombras, como baluarte, sustentáculo, amparo, mas nunca em primeiro plano.
Crédito da Imagem: Conceição Evaristo Instagram
Um dos lugares mais importantes da intelectualidade brasileira, a famosa ABL (Academia Brasileira de Letras), fundada em 1897, impediu que uma mulher fizesse parte de seu quadro de imortais pelo simples fato de ser mulher, de acordo com estudos e publicações da Universidade Federal do Recôncavo Baiano a escritora Julia Lopes de Almeida, foi uma das pessoas que ajudaram a fundar a ABL, todavia, foi obrigada a ceder sua cadeira para o seu marido, a regra da instituição não permitia a presença feminina. Naquele momento, naquele lugar, ela mulher, não poderia ousar querer este lugar. De acordo com a publicação:
A cadeira de número 3 da Academia Brasileira de Letras (ABL) guarda uma história de injustiça no meio literário que nos ensina sobre a importância do protagonismo feminino em nossa atual sociedade. A escritora Júlia Lopes de Almeida mostrou a importância de sua obra em meio a uma época da história do Brasil extremamente sexista e conservadora. Mesmo participando de reuniões e contribuindo para a fundação da ABL, ela não foi escolhida para figurar entre os imortais da Academia. O motivo? Ser mulher. (https://www1.ufrb.edu.br/)
Em artigo de Luciene Carris, Julia Lopes de Almeida é trazida em outra perspectiva, no lugar de mulher que sentiu medo do pecado da escrita, sendo assim, talvez, alguém pode se perguntar, mas por quê e para quê falar sobre isso, ou seja, sobre a mulher de novo? Porque, a ABL demorou exatos 80 anos para aceitar uma mulher, a escritora Cearense Raquel de Queiroz, mas, a mulher negra ainda não chegou lá, aliás a mulher negra, acaba ocupando um lugar de apagamento e ostracismo surreal.
Uma das grandes escritoras negras, viva e que está produzindo, participou de uma eleição para a ABL, e obteve somente, um único voto. Conceição Evaristo, a mulher negra que produz, que escreve que diz que “nasceu em meio as palavras”, reconhecida, e cunhadora do termo escrevivência, que pode ser entendido como a união das palavras escrever e vivência, ou seja, escrevemos com nossas subjetividades, através das vivências que temos, ela Conceição, que é gigante das letras, dos pensamentos, das representações, recebeu um único voto.
Em texto anterior A mulher na escrita, trago Maria Firmina dos Reis, uma mulher maranhense que ficou no ostracismo por décadas, foi resgata por acaso, e mesmo assim, esse resgate não deu exatamente visibilidade nacional, seu livro Úrsula, permanece pouco lido e menos ainda discutido nas rodas de leitura, nos eventos acadêmicos. Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Maria Beatriz Nascimento, dentre tantas outras, mulheres, negras, historiadoras, pesquisadoras, escritoras, sociólogas, etc. são invisibilizadas, negadas, oprimidas, justamente para que fiquem ali no lugar que os hegemônicos querem que fiquem.
Nossa ABL, permanece sem nenhuma mulher negra, sem nenhum representante dos povos originários, certamente há quem diga que a ABL é apenas uma instituição, mas não é, é um lugar importante, é espaço de destaque, de reconhecimento, de pertencimento e de representatividade. É urgente que esses espaços sejam lugares tragam o que é a sociedade ,brasileira, somos um povo multicultural, não é possível que se mantenha sem a presença de mulheres negras.
Hoje, Conceição Evaristo tem reconhecimento, está com uma Casa Escrevivência Conceição Evaristo, no Rio de Janeiro, é lida em muitos lugares, discutida nas universidades, cresce a olhos nus o interesse pelo trabalho dela, todavia, ela precisou ter reconhecimento internacional primeiro para depois ser vista aqui, apesar desse reconhecimento, não foi aceita na ABL.
Certamente a chegada de pessoas negras nas universidades tem grande participação na “descoberta” das literaturas das mulheres negras, implementada em 2012, a lei de cotas (Lei nº 12.711/2012), até hoje tem uma resistência enorme por parte das elites, afinal, as pessoas acostumadas a um lugar de privilégios foram obrigadas a dividirem salas de aula, mesas de debates, lugar de fala. Pessoas negras passaram a buscar leituras onde conseguissem se perceber. Portanto, ao meu ver, devemos um VIVA as cotas e claro, um VIVA as mulheres negras que resistem e criam. E, que nossas escritas sejam lidas e respeitadas, nós as mulheres que subsistimos apesar de tudo.
Referências:
BRASIL: LEI Nº 12.711, DE 29 DE AGOSTO DE 2012.
CARRIS, Luciene. Reflexões fluídas sobre o 08 de março: as mulheres e a escrita. Disponível em: https://www.boxdigitaldehumanidades.com/post/reflex%C3%B5es-flu%C3%ADdas-sobre-o-08-de-mar%C3%A7o-as-mulheres-e-a-escrita. Acesso em: 10 abr. 2023.
EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
__________________. Casa Escrevivência Conceição Evaristo. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CofbY-IpKKa/. Acesso em 11 de abr. 2023.
NASCIMENTO, Patrícia Freire do. JÚLIA LOPES DE ALMEIDA: Conheça a história da primeira mulher da ABL. Disponível em: https://www1.ufrb.edu.br/bibliotecacecult/noticias/334-julia-lopes-de-almeida-conheca-a-historia-da-primeira-mulher-da- Abl Acesso em: 12 abr. 2023.
Roda Viva - Conceição Evaristo. 06.09.2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Wnu2mUpHwAw&t=2914s . Acesso em 12 abr. 2023.
SOARES, Luzimar. A mulher na escrita. Disponível em: https://www.boxdigitaldehumanidades.com/post/a-mulher-na-escrita. Acesso em: 10 abr. 2023.
[1]Fonte: Agência Câmara de Notícias
*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP)
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