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Pobres criaturas: um passeio pela história da arte, do cinema, da moda e da arquitetura

Rio de Janeiro, 22 de março de 2024

Carlos Eduardo Pinto de Pinto*

Paulo Debom**


Pobres criaturas (Poor things, 2023), filme dirigido por Yorgos Lanthimos, ganhador de quatro Oscars - melhor atriz, melhor figurino, melhor cabelo e maquiagem, melhor direção de arte -, conta a história de Bella Baxter (Emma Stone), jovem que, no século XIX, foi trazida de volta à vida pelo cientista Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe). Apesar de ter o corpo de uma mulher adulta, no início da história ela se comporta como uma criança e, aos poucos, desenvolve habilidades motoras, racionais e emocionais. Quando chega à “adolescência”, foge com um advogado aventureiro (Mark Ruffalo) e se entrega à vida, sem amarras sociais. Com seu comportamento desregrado, Bella impõe à sociedade – especialmente, aos homens – sua liberdade, se vestindo, comendo e mantendo relações afetivas e sexuais de modo independente, de uma maneira impensável para a Era Vitoriana, e talvez também para a atualidade.


O grande sucesso do filme se deve, por certo, ao seu enredo inusitado, que lhe rendeu a fama de um filme feminista, ainda que parte do público se oponha a essa ideia pelo fato de a película ser escrita e dirigida por homens. Sobre a polêmica, concordamos com a perspectiva de Isabel Wittmann (2024), que não apenas enfatiza que Emma Stone também é produtora do filme, o que lhe garante certo grau de controle sobre os sentidos propostos pela obra, como chama a atenção para o fato de que a construção do “male gaze” (olhar masculino) não é necessariamente atrelada ao gênero de quem dirige: homens também podem realizar filmes que não reiteram um viés objetificador sobre os corpos e as existências femininas. Sem pretensão de resolver essa contenda - mas tampouco a deixando de lado -, nosso principal objetivo aqui é passear por algumas das muitas referências à história da arte, do cinema, da moda e da arquitetura, que também colaboraram para a boa recepção de Pobres criaturas.


Uma de suas características marcantes é o figurino assinado por Holly Waddington, em especial o guarda-roupa da protagonista, que, apesar de corresponder parcialmente aos padrões da Era Vitoriana, destoa do convencional. No início, em sua fase infantil, Bella usa peças brancas que parecem sempre incompletas – camisas sem saia, mangas mais compridas que seus braços, babados em excesso. Seus trajes dialogam com o comportamento de uma criança desajeitada que destrincha com grande curiosidade os cenários que a cercam. Mais tarde, descobrindo e explorando o mundo, seu vestuário despreza as regras comportamentais do século XIX, com vestidos sem espartilho e roupas íntimas usadas como minissaias ou shorts, com uma pegada que lembra os looks de Jean-Paul Gaultier nos anos 1980, 1990. A impressão é de um desfile de alta costura atual, inspirado nos séculos XIX e XX, com toques da desconstrução de André Courrèges e Mary Quant e da irreverência baseada em pesquisa de silhuetas de épocas diversas à Vivienne Westwood. Aliás, vale destacar que Emma Stone em seu trabalho anterior, Cruella (2021) - outra obra em que interpretou uma mulher dona de seu próprio destino -, também vestiu trajes inspirados na diva punk inglesa.





Frame do filme. Destaque para a ousadia do figurino e para a forma fálica das janelas do bordel em que Bella trabalha em parte de sua trajetória. Imagem disponível em: https://mamasgeeky.com/2023/09/poor-things-review.html. Acesso: 21 mar. 2024.


  1. Exposição sobre Mary Quant no Victoria and Albert Museum. Imagem disponível em: https://www.theguardian.com/fashion/2019/apr/03/mary-quant-at-va-playful-designer-who-launched-a-fashion-revolution. Acesso: 21 mar. 2024.

  2. Criação de Vivienne Westwood. Imagem disponível em: https://chloeiriskennedy.substack.com/p/vivienne-westwood-springsummer-1994. Acesso: 21 mar. 2024.


Essa espécie de “mosaico cronológico” do figurino está de acordo com a história narrada, inspirada em Frankenstein (1818). Como a criatura de Mary Shelley, Bella e suas roupas são junções de peças originalmente distintas. Esse aspecto também é explorado pela direção de arte e pela cenografia assinadas por James Price, Shona Heath e Zsuzsa Mihalek, que partem de referenciais históricos para lhes acrescentar tons surrealistas. Neste ponto, vale destacar a mansão do dr. Godwin, em estilo Art Nouveau, em diálogo com a obra de Victor Horta. Marcado pela assimetria, com formas curvas e voluptuosas inspiradas na flora, na fauna e nas silhuetas femininas, esse estilo arquitetônico carrega componentes que podem ser mobilizados em uma narrativa onírica. Afinal, os animais, as flores e os frutos reproduzidos nos artefatos decorativos nem sempre correspondem a padrões naturalistas, do mesmo modo que as criaturas de Godwin – cães com cabeça de pato ou mulheres com cérebro de bebês– resultam de sua livre imaginação, sem condicionantes éticos.



  1. Frame do filme: duas criaturas de Dr. Godwin em sua mansão Art Nouveau, um estilo arquitetônico marcado pela livre recriação de formas da natureza. Imagem disponível em: https://beforesandafters.com/2023/12/09/miniatures-led-walls-and-live-action-animals-stitched-together-the-vfx-of-poor-things/ Acesso: 21 mar. 2024.

  2. Detalhe da arquitetura de Victor Horta, cuja obra é um dos exemplos mais conhecidos de Art Nouveau. https://www.archdaily.com.br/br/897478/a-obra-de-victor-horta-arquiteto-do-art-nouveau. Acesso: 21 mar. 2024.

  3. Entrada de um edifício Art Nouveau: destaque para as figuras femininas (o nu masculino é uma exceção à regra do gênero, que preferia reproduzir formas femininas) e os motivos vegetais e animais. Imagem disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.128/6763. Acesso: 21 mar. 2024.


O corpo feminino idealizado é outro ponto de contato com a história narrada – Bella exibe sua nudez com a mesma naturalidade e prodigalidade que as mulheres de pedra ou tinta espalhadas pelas paredes dos edifícios Art Nouveau, com os cabelos longos e esvoaçantes espalhados no espaço ao modo de ramificações florais. A diferença é que, no lugar de se manter inerte e entregue, a protagonista se impõe - e faz isso com tanta naturalidade, que nos permite compreender que não deveria existir outra possibilidade. Em Paris, Bella opta por trabalhar como profissional do sexo em um bordel também Art Nouveau, com a diferença de que, no lugar das formas femininas, o que chama a atenção aqui são os vitrais em formato fálico, como a indicar que esse é um território dominado por homens. Esta sequência também nos remete ao universo das pinturas de Toulouse-Lautrec, o mestre francês que imortalizou a vida da boemia parisiense em suas obras. Assim como os personagens nas pinturas de Lautrec, Bella, suas colegas e clientes do bordel são retratados com uma mistura de realismo cru, humor patético e uma aura de melancolia e solidão.




  1. Frame do filme: imagem da cafetina que recebe Bella em seu bordel, cujas semelhanças com a representação de prostitutas nos quadros de Toulouse-Lautrec é flagrante. Disponível em: http://thefilmexperience.net/blog/2023/6/13/yes-no-maybe-so-poor-things.html. Acesso: 21 mar. 2024.

  2. La Goulue chegando ao Moulin Rouge com duas mulheres, quadro de Toulouse-Lautrec de 1892. Disponível em: https://www.ebiografia.com/toulouse_lautrec/. Acesso: 21 mar. 2024.


Na cenografia das cidades por onde Bella circula e nos intertítulos que dividem e apresentam as partes do filme, é patente a inspiração de Mélies - o mágico francês que se tornou realizador de películas no início da história do cinema, como Viagem à lua (1902), e que, por sua inventividade, é considerado o pai da ficção científica cinematográfica.




  1. Frame de uma ficção científica de Georges Méliès. Disponível em: https://hellblogdavan.blogspot.com/2018/12/georges-melies.html. Acesso: 21 mar. 2024.

  2. Frame do filme: Bella “cavalga” um peixe gigante em um dos intertítulos. Disponível em: https://www.instagram.com/poorthingsfilm/p/C2nqQxYy7uB/?img_index=1. Acesso: 21 mar. 2024.


Também no campo da ficção científica está outra inspiração: Metrópolis (1927), de Fritz Lang. Entre diversos aspectos, conseguimos notar diálogos com o filme de Lang no desenho da Lisboa retrô futurista em que Bella dá seus primeiros passos rumo à liberdade, com veículos flutuantes suspensos por trilhos aéreos. O filme também pode ser chave de interpretação para o modo como o corpo feminino é manipulado e subjugado pelos homens: uma das protagonistas, Maria, é uma androide fabricada em laboratório, que ganha vida de maneira semelhante ao “renascimento” de Bella, em uma máquina futurista que lhe cobre com uma teia movente de raios luminosos (que, aliás, também é a forma como a criatura de Dr. Frankenstein ganha vida na adaptação cinematográfica de 1931, dirigida por James Whale). Ainda que tenham funções narrativas distintas – Maria é uma vilã e Bella, uma heroína – ambas têm comportamentos ousados e proativos, evidenciando, de formas distintas, o temor causado pela  autonomia feminina.





  1. Frame do filme: o experimento que traz Bella de volta à vida. Disponível em: https://olhardigital.com.br/2023/05/11/cinema-e-streaming/poor-things-veja-o-teaser-de-emma-stone-como-frankenstein/ Acesso: 21 mar. 2024.

  2. Maria, a androide vilã de Metrópolis (1927), no momento em que ganha vida. Disponível em: https://www.ign.com/videos/metropolis-marias-transformation. Acesso: 21 mar. 2024.


De volta ao campo da história da arte, encontramos uma alusão ao quadro Almoço na relva, de Édouard Manet, de 1865-6, que representa homens elegantemente vestidos em um picnic, acompanhados de uma mulher nua e outra seminua: uma partilha a refeição e a outra se banha ao fundo. A referência ocorre no momento em que Bella exige sair da mansão em um passeio com o dr. Godwin e seu assistente – apesar de não estar nua nesta cena, o modo libertário como Bella se relaciona com seu corpo pode ser evocado aqui e simbolicamente representado pela associação com a pintura. Podemos nos perguntar, como fazemos diante do quadro de Manet, se o corpo feminino desnudo está ali (e no filme) para deleite dos outros personagens e de um público idealmente masculino e heterossexual. Por outro lado, a postura de Bella (assim como a das mulheres no picnic) talvez pressuponha empoderamento e domínio sobre o próprio corpo, numa espécie de libertação das amarras comportamentais, como quando veste peças que evidenciam a vivência voraz de sua sexualidade. Afinal, além de não usar espartilho e exibir pernas e braços, em si gestos de liberdade frente à opressão dos padrões vitorianos, a personagem veste criações graficamente sexualizadas, que ora remetem a uma vulva, ora a um preservativo. A proposta, nesses casos, não nos parece ser a exploração erótica do corpo da personagem, mas a explicitação de suas atitudes radicais, inclusive no sexo.




  1. O almoço na relva, de Édouard Manet, quadro de 1865-6. Disponível em: https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/almoco-na-relva-edouard-manet/ Acesso: 21 mar. 2024.

  2. Frame do filme: apesar de não ser uma reprodução mimética do quadro de Manet, é possível perceber semelhança na disposição dos atores e da atriz no espaço. Disponível em: https://www.starplus.com/pt-br/video/0bfc3435-ed8b-4048-b74f-54c84a753e48. Acesso: 21 mar. 2024.



  1. Um vestido que remete ao formato de uma vulva. Disponível em: https://muddystilettos.co.uk/things-to-do/film-tv/film-review-poor-things-18/ Acesso: 21 mar. 2024.

  2. Capote de vinil que lembra um preservativo masculino. Disponível em: https://www.vanityfair.com/hollywood/awards-insider-poor-things-screenwriter-tony-mcnamara. Acesso: 21 mar. 2024.


Como apontamos inicialmente, nossa proposta era passear por algumas referências que embasam a criação de Pobres criaturas. Ao longo da obra percebemos diálogos com variados movimentos e seus criadores,  como as linhas do Art Nouveau - em especial de Horta -, as tintas de Manet e Toulouse Lautrec, as silhuetas de Gaultier, Westwood, Quant e Courrèges, as películas de Méliès e Lang, entre outras citações. A junção de tantos elementos poderia ter resultado em apenas um mosaico exaustivo e tedioso, mas ocorreu o oposto: uma obra-prima visual, que nos convida a pensar não apenas por meio da história que conta, mas também das imagens e objetos que escolheu para narrá-la.

 

Referências

 

BURMANN, Van. Hellblog da Van: Georges Méliès. Acesso: 21 mar. 2024.

WITTMANN, Isabel. Pobres Criaturas, sexualidade e autonomia – Feito por Elas. Acesso: 21 mar. 2024.

 

 

 *Carlos Eduardo Pinto de Pinto é historiador e professor (UERJ)

** Paulo Debom é historiador e professor (Senai Cetiqt/Escola de Artes Celso Lisboa)


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