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A mulher na escrita

Guarulhos, 15 de fevereiro de 2023.

Luzimar Soares*


A sorte me reservava ainda longos combates. Quando de me arrancaram daqueles lugares onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus!

O que se passou no fundo da minha alma, só vós o pudestes avaliar!...

Maria Firmina dos Reis.

O papel da mulher nas sociedades foi determinado há muito como sendo a da mãe, cônjuge, dona de casa, trabalhadora, etc., etc., etc. Todavia, todos esses papeis ela deve desempenhar em subordinação ao homem, seja ele o pai, o cônjuge, o chefe, ou, até mesmo, apenas um namorado. Obviamente, muitos discordarão do escrito aqui, por isso mesmo, quero convidar a quem concorda, mas especialmente a quem discorda deste texto, a fazer um exercício de perquirição histórica.


De acordo com os últimos dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2019, há mais homens analfabetos do que mulheres: “A taxa de analfabetismo para os homens de 15 anos ou mais de idade foi 6,9% e para as mulheres, 6,3%.” No entanto, os homens continuam ganhando mais do que as mulheres e, em 2021, a diferença voltou a crescer, conforme divulgado pelo blog Fundo Brasil:


Por exemplo, em 2009, as mulheres ganhavam 25% a menos que os homens. Oito anos depois, em 2017, essa diferença caiu para 20,7%. A gente estava no caminho certo, mas a situação voltou a piorar ano passado, quando a diferença salarial entre homens e mulheres aumentou para 22%.


A importância de trazer esses dados se dá pelo fato de que se, ainda, no momento atual, a mulher permanece ganhando menos, mesmo sendo mais instruída, imaginemos a vida da mulher no século XIX, naquele período quando ela sequer podia estudar (somente em 1827 as mulheres foram autorizadas a estudar), como elas podiam ousar a praticar a escrita? Lembrando que, neste momento o letramento era permitido, no entanto, a graduação ainda lhes era negada. Chegar a este lugar só foi permitido em 1879.


O ano de 1832, certamente, foi bastante amargo para algumas pessoas, quando uma mulher resolveu publicar uma obra intitulada: Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens, livro de Nísia Floresta, considerado um precursor do feminismo no Brasil. Publicar livros para mulheres, naquele momento, era algo basicamente impensável, basta considerar o já exposto com relação às possibilidades que eram dadas às mulheres.


Como se fossem gotículas de água caindo em pedreiras, as mulheres foram, aos poucos, conquistando seus espaços. O ano de 1859 tem uma das obras de literaturas mais impactantes que eu já li. Quando foi publicada essa bibliografia, não trouxe o nome de sua autora somente: “Uma Maranhense”, trata-se de Úrsula, escrito por Maria Firmina dos Reis. Uma literatura tão forte e com tantas denúncias, sejam elas explícitas ou implícitas, (se é que são implícitas). Para mim, são todas mais do que explícitas. Úrsula é, na minha leitura, um romance denúncia do escravismo.




A escritora maranhaense Maria Firmina dos Reis.

Crédito da Imagem: Personalidade negra. Palmares Fundação Cultural.

Disponível em: https://www.palmares.gov.br/?p=34293



No entanto, o livro não se detém em esbugalhar as crueldades às quais as pessoas escravizadas viviam no território brasileiro. Ela vai muito além, lança-se a terras desconhecidas fisicamente, mas trazida na memória dos escravizados. Em seu romance, a África é uma terra de liberdade que foi invadida por bárbaros brancos para arrancarem as pessoas e as jogarem em navios, e depois vendê-las. Pela primeira vez na literatura brasileira, alguém usando a escrita inverteu a lógica escravocrata que tratava os escravizados como bárbaros e incapazes, e, por isso, eram escravizados.


Maria Firmina dos Reis traz, ao longo de suas páginas, de maneira escancarada, a forma como a mulher é um objeto de uso e de posse do homem. A mulher branca é dada em casamento por seu pai ao homem que ele escolheu, é mandada para a casa do novo dono numa transferência de posse. Nada importa o que ela pensa, se é objeto de desejo de algum poderoso, não pode se negar a contrair matrimônio, pois, se o fizer, será morta; se fugir do seu pretendente, será caçada; se tiver casado com outro, ambos serão mortos.


Quando se trata da mulher negra, a desumanidade é total: presas, acorrentadas, vendidas, estupradas, apartadas de seus filhos, açoitadas, queimadas, torturadas das formas mais cruéis possíveis. Elas são destituídas de qualquer direito, ainda assim, a autora devolve a humanidade a essas mulheres, trazendo a memória da vida vivida em África para mostrar que a beleza da vida dessas mulheres lhes foi arrancada para dar lugar à escravidão.


Mas Maria Firmina dos Reis ficou “esquecida” por muitos anos. Sua literatura não é discutida nas salas de aula, não é objeto de debate, aliás, ela sequer era citada. Ela foi descoberta por acaso. Um artigo da revista Cult, intitulado: “Quem foi Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista brasileira”, de 10 de novembro de 2017 diz:


Esquecida por décadas, sua obra só foi recuperada em 1962 pelo historiador paraibano Horácio de Almeida em um sebo no Rio de Janeiro – e, hoje, até seu rosto verdadeiro é desconhecido: nos registros oficiais da Câmara dos Vereadores de Guimarães está uma gravura com a face de uma mulher branca, retrato inspirado na imagem de uma escritora gaúcha, com quem Firmina foi confundida na época. O busto da escritora no Museu Histórico do Maranhão também a retrata “embranquecida”, de nariz fino e cabelos lisos.


A sociedade maranhense e brasileira a apagaram de tal maneira através do embranquecimento, que seus traços foram afinados para parecer branca. Se analisarmos com cuidado, ela foi vítima da violência que denunciava. Talvez, a transformação ainda aconteça na atualidade, se não na escrita, certamente acontece na fala. A escritora Naomi Wolf (2019, p. 158) aponta como as estratégias que são utilizadas para que uma mulher seja ouvida quando faz um discurso por exemplo.


Dale Spender, em Man Made Language [Linguagem feita pelo homem], revela que, durante uma conversa, os interrompem as mulheres na grande maioria das vezes e que homens dedicam atenção apenas intermitente às palavras das mulheres. Por esse motivo, toda uma pirotecnia de luz e cor precisa acompanhar o discurso feminino para atrair uma atenção que começa a se dispersar no instante em que as mulheres abrem a boca. A aparência das mulheres é considerada porque o que elas dizem não.


A escrita ou o discurso feminino ainda tem um longo caminho para ter o mesmo lugar que o masculino. Assim como o salário é menor, o lugar de decisão também não pertence à mulher. Continuar escrevendo é minha maneira de não silenciar.


Referências:


Conquistas do feminismo no Brasil: uma linha do tempo. Disponível em: https://nossacausa.com/conquistas-do-feminismo-no-brasil/?gclid=EAIaIQobChMI5-en4ouO_QIVwehcCh2t8QahEAAYAiAAEgL8qPD_BwE. Acesso em: 12 de fev. 23.

D'ANGELO: Helô. Quem foi Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista brasileira. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/centenario-maria-firmina-dos-reis/. Acesso em: 12 fev. 23.

IBGE. Conheça o Brasil – População – EDUCAÇÃO. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18317-educacao.html. Acesso em: 12 de fev. 23.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Rio de Janeiro: Antofágica, 2021.

WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.


*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).

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