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Mulheres em tempos de pandemia: entre o café e a resistência

Rio de Janeiro, 02 de agosto de 2021.

Luciene Carris*



Era uma quarta-feira, se encontravam na cozinha da casa quatro mulheres que falavam sobre as trivialidades da vida. A conversa girava em torno do almoço daquele dia e dos últimos acontecimentos dos jornais, são tempos realmente difíceis por conta da pandemia da Covid-19. Mas havia ainda espaço para outros assuntos, uma delas fantasiou um ideal de família com filhos, uma casa, quase uma cena de comercial de margarina, aquele tipo de tradicional família burguesa heteronormativa. Por sua a vez, a mais velha disparou para confidenciar algo que causou um certo incômodo entre as mulheres. Casada há tantas décadas, ela relatou que o marido tentava controlar o seu escasso dinheiro e quando ocorria algum tipo de resistência, o parceiro costumava ser extremamente ríspido, ou melhor, grosseiro.



Crédito da imagem: Freepik.


De repente, o telefone tocou, do outro lado uma jovem aos prantos denunciava que havia sido vítima de uma agressão pelo seu companheiro e pedia um conselho sobre qual atitude tomar. A conversa passou a se concentrar no repugnante episódio. Diversas emoções como surpresa, consternação e indignação brotaram, no meio do caldeirão de sentimentos, também muitos questionamentos sobre comportamentos e determinadas escolhas. Algumas indagaram o porquê da jovem permitir tal tipo de violência. Algo de coerente saiu da voz daquela que lavava a louça do café da manhã e de uma outra, que afirmou que jamais permitira em algum momento da sua vida algum ser do sexo masculino levantasse o tom de voz, ou seja, demonstrasse qualquer atitude autoritária.


De acordo com a Lei Maria da Penha que entrou em vigor em 2006, a violência doméstica e familiar se caracteriza pela violência física, psicológica, moral, patrimonial e sexual. Nada contra a idealização de uma família imaginária, mas o dia a dia difere muito de um comercial de televisão ou de um filme romântico com final feliz. Mas o difícil foi explicar para aquela senhora que ninguém tem o direito de controlar o dinheiro que possui ou recebe, pois essa atitude se trata de um claro exemplo de violência patrimonial. E quando o seu companheiro levanta o tom de voz, torna-se grosseiro, aí se trata de uma violência psicológica. Mas quando a violência deixa marcas evidentes no corpo, se trata de uma violência física. Quando chega neste estágio brutal, geralmente os outros tipos de violência estão acoplados, interligados e misturados. As falas femininas daquela suposta conversa matinal repetem um roteiro aparentemente pré-determinado, pois os casos narrados acima se assemelham com muitos daqueles divulgados em jornais de grande circulação, reproduzem aspectos bem comuns de violência doméstica e do cotidiano das mulheres.


Não é uma novidade que a pandemia da Covid-19 escancarou episódios de violência contra as mulheres, muitos destes casos grotescos acabaram culminando em feminicídio. Além da violência doméstica, sem dúvida a quarentena, o isolamento e o distanciamento social aumentaram a sobrecarga do cotidiano do trabalho doméstico, aliás sempre associado às mulheres. Nesta divisão sexual do trabalho, tradicionalmente cabem às mulheres os cuidados com as crianças, os idosos e os doentes. É bem verdade que é uma atitude supremacista de poder que encontramos em muitas sociedades do mundo, apresentando características diferenciadas de acordo com cada país. Não se “ajuda” no trabalho doméstico, o ideal a ser alcançado é o compartilhamento de afazeres que são responsabilidades de todos da mesma casa. Não há status ou remuneração para o trabalho doméstico feminino, algo bem naturalizado na estrutura da sociedade patriarcal, que não reconhece ou valoriza o trabalho da “dona de casa” ou, melhor dizendo, desqualifica ainda o trabalho de muitas mulheres até no mercado formal, que recebem salários, oportunidades e promoções nas carreiras, na maioria dos casos, desiguais e desproporcionais, também comum no ambiente de trabalho são os episódios e assédio moral e sexual tão bem relatados nos noticiários.


É bem verdade que a violência contra a mulher não é uma novidade, é uma construção histórica, se constitui um fenômeno social grave em todos os segmentos da sociedade brasileira. Ainda é um longo caminho para erradicá-lo, então, o debate deve ser constante nas ruas, nas escolas, nas mídias, nas instituições religiosas, nas empresas etc. É um fenômeno que foi silenciado durante um bom tempo, bem resumido naquela expressão que se ouvia até pouco tempo: “em briga de marido e mulher não se mete a colher” que se desdobrou no bordão atualizado para os novos tempos: “em briga de marido e mulher a gente salva a mulher”. Como ressaltou Tânia Pinalfi,


A violência contra a mulher traz em seu seio, estreita relação com as categorias de gênero, classe e raça/etnia e suas relações de poder. Tais relações estão mediadas por uma ordem patriarcal proeminente na sociedade brasileira, a qual atribui aos homens o direito a dominar e controlar suas mulheres, podendo em certos casos, atingir os limites da violência (Pinafi, 2007).


Não é demais destacar a história do Brasil é uma história do apagamento da violência, um fenômeno que está na raiz estruturante da nossa sociedade, outrora escravista. O certo é que isto deixou marcas profundas e enraizadas nas nossas relações sociais, pois “no cotidiano e no imaginário social coletivo perseveram arraigados o preconceito, a intolerância e a violência então naturalizados em situações e nos discursos diários dos brasileiros” (Maia; Cardoso & Santos).


Trata-se de uma questão política, é um problema de saúde pública e, por sinal, merece políticas públicas específicas, que envolvam a construção a busca pela igualdade, justiça social, cidadania, democracia e autonomia. Então, a discussão é mais profunda do que aquela conversa ficcional entre as quatro mulheres no café da manhã de um dia de qualquer, que bem exemplifica determinados comportamentos entre as mulheres. Mas já é um começo para se repensar e exercitar a empatia, o respeito, a compaixão e alteridade femininas, para chegar naquele ideal de sororidade, interpretado como união e aliança entre as mulheres. Por fim, ainda me questiono se isto seria realmente alcançável sem um debate constante, porque demanda superar antigos hábitos e preconceitos tão bem enraizados.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).


Referências:

PINALFI, Tânia. Violência contra a mulher: políticas públicas e medidas protetivas na contemporaneidade. Revista Histórica, n. 21, 2007, Arquivo Público do Estado de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao21/materia03/ Acesso em: 01 ago. 2021.

Teles, Maria Amélia Almeida; Melo, Mônica. O que é violência contra a mulher (Primeiros Passos). São Paulo: Brasiliense, 2017.

MAIA, Andréa Casa Nova; CARDOSO, Luciene P. Carris; SANTOS, Vicente Saul M. dos. “Questões de gênero e grupos “minoritários”. In: ________. Lições do Tempo: temas em história e historiografia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.






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