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  • Foto do escritorLuciene Carris

Mulheres francesas na paisagem carioca Oitocentista

Atualizado: 19 de mar.

Rio de Janeiro, 19 de março de 2024.

Luciene Carris*


No último texto publicado no Box Digital de Humanidades ressaltei a importância de uma perspectiva feminina na escrita sobre a história e as peculiaridades do Rio de Janeiro. Especialmente, critiquei o apagamento da presença indígena e africana, assim como o esquecimento dos estudos e da presença femininas nas ruas, temas que são de particular interesse para mim.




Rua do Ouvidor, Marc Ferrez.

Crédito da Imagem: Instituto Moreira Salles.

Disponível no Wikicommons.


Reconheço que pode ter havido mal-entendidos ou uma possível falta de clareza (da minha parte) em relação aos objetivos que estabeleci, uma vez que as críticas dos leitores se restringiram, essencialmente, a um debate caloroso sobre os nomes masculinos das ruas do Rio de Janeiro, algo que mencionei logo no primeiro parágrafo.


Contudo, não me dei por vencida na minha provocação. Evidentemente, novas pesquisas interseccionais têm contribuído para a história do Rio de Janeiro, diga-se de passagem, dentro e fora do ambiente universitário. Vale a pena mencionar os grupos e laboratórios de pesquisas nas faculdades, instituições científicas e culturais como o Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, bem como pesquisadoras e pesquisadores institucionalizados ou independentes, aliás, é nesta última categoria que me incluo.




Crédito da imagem: Editora Ayran.

Acesso em: 19 mar. 2024.


Destaco as contribuições de Angela de Castro Gomes, Andrea Casa Nova Maia, Beatriz Kushnir, Claudia Mesquita, Denise Porto, Joice Berth, Lauren Elkin, Leslie Kern, Luzimar Soares e Marieta Ferreira, bem como de tantos outras nomes de estudiosas e estudiosos que se dedicam aos estudo sobre as cidades e as mulheres, e que têm me inspirado novas reflexões sobre o direito à cidade, sobre a ideia de pertencimento e sobre a mobilidade urbana.


No rol das leituras recentes, tive o prazer de concluir, finalmente, o livro da professora e historiadora Lená Medeiros de Menezes intitulado de Francesas no Rio Imperial: a ‘França Antártica’ no feminino plural, publicado, recentemente, pela editora Ayran.


Ao refletir sobre as interações entre Brasil e França no século XIX, a relação entre civilização e progresso é o tema central, pois a cultura, a arte, a ciência e a literatura moldaram percepções e valores na sociedade brasileira sobre o que seria uma nação civilizada, delineando um ideal que o Brasil buscava alcançar naquele momento. Contudo, um outro aspecto pouco apontado, mas agora emergindo nas discussões, foi a imigração feminina francesa para o outro lado do Oceano Atlântico, especificamente para o Rio de Janeiro. Assim, como bem apontou Lená Medeiros de Menezes a realidade dos trabalhadores franceses era espinhosa, uma vez que:

 

Nem a França foi imune a problemas enfrentados por outros países europeus: crises agrícolas, êxodo rural, miséria, moléstias, superexploração no trabalho e prostituição nem ela deixou de exportar seus pobres, em especial mulheres. Não de forma massiva, mas de maneira continuada, processo que acompanhou o longo caminho de passagem do mundo dos ofícios ao sistema fabril. Essa foi uma história efetivamente vivida, mas incômoda de ser contada (Menezes, 2024, p. 40).

 

Não é demais recordar o silenciamento sobre as imigrantes, que viviam em situações precárias, descritas como “mal pagas, criadas e prostitutas”. Mas, quem eram, de fato, essas mulheres? A busca por respostas conduziu a uma extensa pesquisa por parte da historiadora nos arquivos da Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional e da Biblioteca Nacional de Paris. O estudo meticuloso abrangeu a análise de documentos variados, incluindo registros de passaportes, listas de passageiros, anúncios em jornais, almanaques, censos, relatórios demográficos e obras de memorialistas, entre outras fontes e revisões bibliográficas.




Crédito da imagem: Óleo em tela de Lená Medeiros Menezes,

inspirado em ilustração de F. Corbin (Alexandre, 1902).


A estrutura da obra compreende seis capítulos, acrescidos de uma apresentação, um prólogo e um epílogo, além da bibliografia e de um indíce prosopográfico. O primeiro capítulo se intitula "Mulheres trabalhadoras nos dois lados do Atlântico", ao qual se sucede "Rio de Janeiro: a descoberta do movimento". Prosseguindo, encontramos os capítulos "Profissionais da moda: arte no painel de tesoura", "As cocottes do Alcazar e o demi-monde tropical", "Parteiras e professoras: mulheres em formação", e finalizando com "Mulheres em outras cenografias".


Através de uma escrita primorosa, as páginas do livro nos levam pelas histórias de diversas imigrantes francesas, cujas vidas foram muitas vezes ignoradas e abandonadas à sombra do esquecimento, mulheres que caminharam pelas ruas da cidade na busca pela sobrevivência em território distante.


No começo desta história, somos introduzidos a Anne Durocher e a pequena Marie Joséphine, mãe solteira e filha que desembarcaram no Rio de Janeiro em 1816 depois de três meses de uma turbulenta viagem transoceânica. Ao contrário de outras conterrâneas, Anne era alfabetizada, falava várias línguas e ficou conhecida como uma das primeiras modistas francesas da rua do Ouvidor, local onde se concentravam elegantes lojas de roupas, livrarias, joalherias, cafés e confeitarias. O logradouro ao longo do século XIX se converteu em um ponto de encontro para intelectuais, políticos e artistas.

 

A partir no momento no qual a Ouvidor passou a atrair mulheres para visitas às suas lojas, com suas famosas vitrines expondo as novidades de Paris, a presença feminina nas ruas tornou-se parte de uma modernidade possível, desenvolvendo-se, em consequência, o hábito de, após as compras, parar para tomar um chá ou saborear um sorvete em alguma confeitaria (Menezes, 2024, p. 50).

 

Por sua vez, a sua filha Marie Joséphine não seguiu os passos da mãe. Pelo contrário, foi a primeira mulher a ingressar na Academia de Medicina, estudou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, se tornou uma parteira requisitada e escreveu opúsculos científicos e políticos, bem como foi uma militante da causa abolicionista. A sua austeridade na forma de se vestir, um traje que incluía saia, paletó, cartola, sapatos baixos e bengala não era o esperado para uma mulher, fato que gerou falatórios, mas não atrapalhou a sua longa carreira.


Além delas, a cidade do Rio de Janeiro acolheu diversas figuras femininas como é bem apresentado ao longo do livro: costureiras e modistas, como Mme Latour e Joséphie Meunier; professoras, entre as quais Mme Choulet Mallet; parteiras como Louise Partois e Marie Joséphine Durocher; e artistas que deram vida aos palcos do Alcazar, como Mlle Aline Rizza e Mlle Aimé, esta última chegou à cidade com apenas quinze anos, e sua partida causou um furor entre os seus seguidores e fãs. Outras mulheres também desembarcaram na cidade, “em um Rio que suspirava por Paris”, participando de “outras cenografias”, como evidenciou Lená Medeiros de Menezes:


A grande maioria das francesas que escolheram a cidade do Rio de Janeiro para viver atuaram em espaços de trabalho circunscritos ao então universo feminil. Para além das profissionais da agulha (costureiras, bordadeiras e rendeiras) e comerciantes de moda, destacaram-se parteiras, professoras, lavadeiras e criadas, e no contraponto, cortesãs (identificadas como artistas), meretrizes e prostitutas, representativas de um mundo variado considerado como de não-trabalho (Menezes, 2024, p. 209).

A historiadora também lança luz sobre a notável presença francesa na prostituição, observando seu crescimento a partir de 1860, um fenômeno paralelo à transformação urbana da época. Destacam-se, neste contexto, os bordéis e os chamados conventilhos localizados nos sobrados da rua da Carioca, que, apesar de inicialmente chocarem a população, foram gradualmente se integrando à paisagem urbana do Rio de Janeiro, juntamente com outros espaços ocultos aos olhos dos transeuntes. Importante ressaltar é que, ao aproximar-se do final do século XIX, o Rio de Janeiro emergiu como uma rota para as máfias internacionais dedicadas ao tráfico de mulheres, o que desmente o imaginário de que tal prática seja um fenômeno exclusivamente atual.




Imagem retirada do livro, p. 157.



Algumas francesas fizeram o caminho de volta para casa, enquanto outras encontraram barreiras para o retorno ou optaram em permanecer em um Novo Mundo. Muitas alcançaram sucesso, porém, houve também aquelas que enfrentaram o fracasso, chegando a extremos de desespero que as levaram a abreviar suas próprias existências. Nada mais que humano e contemporâneo nos estudos das experiências de vida dessas mulheres, ressaltando a complexidade e a universalidade dos desafios e lutas enfrentados ao longo da história, algo permanente e inerente a existência humana: a luta pela sobrevivência, pela melhoria da qualidade de vida e a busca pelo sucesso.


Com isso, concluo este breve panorama sobre um livro que, sem dúvida, justificaria uma análise mais detalhada. Contudo, meu objetivo foi despertar a curiosidade do leitor a ponto de incentivá-lo a buscar mais informações e, quem sabe, adquirir o seu exemplar através do site da editora.


Referência:


MENEZES, Lená Medeiros de. Francesas no Rio de Janeiro: A 'França Antárctica' do feminino plural. Rio de Janeiro: Ayran, 2024. Disponível para compra em: https://www.editoraayran.com.br/ Acesso em: 19 mar. 2024.



Luciene Carris é historiadora (UERJ).


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