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  • Foto do escritorLuciene Carris

Luiz Gonzaga e o imaginário do Nordeste

Atualizado: 18 de dez. de 2022

Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 2022.

Luciene Carris *



Uma das minhas recordações de infância no Rio de Janeiro é o tradicional passeio à feira nordestina em São Cristóvão. Como comentei em um texto publicado anteriormente aqui no Box Digital de Humanidades, nasci em Campina Grande, no estado da Paraíba. Talvez seja uma informação não muito relevante para o público leitor, mas aqueles encontros de domingo se inseriam no lazer rotineiro da minha família nordestina. Entre conversas e brincadeiras, o passeio se estendia para outro ponto, a Quinta da Boa Vista, onde costumávamos visitar a antiga residência da família imperial, que era um museu espetacular para qualquer criança, e terminava com os pedalinhos no lago da Quinta.



Crédito da imagem: Portal da cidade de Campina Grande, fotógrafo Chico Figueiredo.

Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, Açude Velho. Campina Grande.


Durante algum tempo da minha tenra infância, São Cristóvão se converteu em um ponto de encontro de amigos e de familiares, que se encontravam em uma determinada barraca e aproveitavam para colocar o papo em dia. Naquela época, diferente das facilidades encontradas dos últimos tempos, a comunicação era escassa, basicamente realizada por carta enviada em alguma agência dos Correios. Ou, algum conhecido que viajava para algum canto do nordeste gentilmente se encarregava de levar a missiva, que chegava ao seu destino depois de mais de quarenta e oito horas. O uso do telefone público ou residencial ainda era bem restrito naquele início da década de 1980.




Crédito da imagem: Site oficial da Feira de São Cristóvão.



A antiga feira se converteu no Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, então transferido para o pavilhão de exposições internacionais fundado na década de 1960. Atualmente, o Centro conta uma infraestrutura bem mais interessante do que naquela época, possui três palcos e cinco praças com nomes de artistas e cidades nordestinas, além de inúmeros restaurantes e um amplo comércio especializado em produtos do Norte e do Nordeste. Além disso, continua como um ponto de encontro para muitos migrantes, bem como um ponto de turismo para muitos cariocas e turistas. É um espaço interessante, pois era um lugar exclusivo daquele migrante nordestino, que a partir da década de 1940 chegava ao Rio de Janeiro, depois de uma extenuante viagem em cima de caminhões improvisados, apelidados de “paus de arara”. Aliás, até o nome é curioso, e foi alvo da pena de Luiz Gonzaga e Guio de Moraes, como observamos a seguir no trecho da letra de título homônimo na voz de Luiz Gonzaga:


(...)

Quando eu vim do sertão Seu môço, do meu Bodocó A malota era um saco E o cadeado era um nó

Só trazia a coragem e a cara Viajando num pau-de-arara Eu penei, mas aqui cheguei Eu penei, mas aqui cheguei Mas aqui cheguei



O certo é que o “pau de arara” continua sendo um meio de transporte clandestino utilizado em alguns lugares no interior do país. Se de um lado remete a um tipo de tortura física, que causa muitas dores nas articulações, por outro, de acordo com o Dicionário do Folclore Brasileiro (1988) do pesquisador e historiador Câmara Cascudo:



Pau de Arara: Denominação popular dos veículos que transportam os sertanejos nordestinos para os Estados do Sul do País. O improvisado e precário arranjo para acomodar as famílias, a promiscuidade, o desasseio, o rumor incessante das vozes de homens, mulheres e crianças, associou o caminhão à imagem do Pau de arara, gradeado de madeira em que os psitacídeos são levados para os mercados citadinos.



De certo, não deixa de ser uma forma de torturar o seu passageiro.



Crédito da imagem: Arquivo Nacional.

Migrantes nordestinos embarcam no veículo “pau de arara”, em maio de 1958.

Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã. BR ANRIO PH_0_FOT_01814_0015



Mas motivada pela nostalgia, talvez pelos sentimentos envolvidos em torno das lembranças, considero que o local anterior era mais genuíno e original. Não sei se a formalização institucional promovida pelo Estado, em 2003, descaracterizou o local que era um espaço destinado ao migrante, que era ignorado na cidade, o “cabeça chata” ou “paraíba”. Até então a feira era exclusiva. Talvez imbuída de um certo preconceito, muitos não a frequentavam. Não posso deixar de afirmar a contribuição do Nordestino para o desenvolvimento do Rio de Janeiro em diversos setores de serviços, do comércio e da indústria, bem como a sua importância sociocultural para a história. Atualmente o site oficial da Feira informa que:


A Feira sintetiza o Nordeste e oferece ao visitante tudo que a região dispõe, exibindo, nas suas quase setecentas barracas, sua riqueza tradicional e proporcionando, ainda, a animação característica da terrinha: Som do Nordeste, forró, xote, baião, xaxado, repente, embolada, martelo, arrasta-pé, maracatu e outros sons bem genuínos.


Havia aquele senhor que vendia discos, e a maneira como costumava expor aquelas relíquias era uma curiosidade à parte. Os vinis com suas curiosas capas eram expostos de maneira horizontal, lado a lado, devidamente encostados no muro do antigo pavilhão. Havia ainda aquele rapaz que vendia as redes de descanso, e não sei como carregava aquele peso nas costas. Havia a dança, a música, a culinária típica e os tradicionais cordelistas, mas tudo ocorria no meio de uma desordem ordenada e gratuita movida na voz dos repentistas, sempre ao som do forró ao fundo. O cheiro dos diferentes tipos de comida típica se espalhava nas barraquinhas de toldo azul, porém, gostava mesmo era do cheiro dos queijos e de saborear a comida típica oriunda do milho como a pamonha. Brincadeiras e diferentes tipos de brinquedos faziam a alegria da garotada, e eram ali vendidos como petecas, piões, bonecas de pano, carrinhos de madeira ou de lata, entre tantos outros, além das novidades introduzidas como o bambolê.



Crédito da imagem: Arquivo Nacional.

Jornal Correio da Manhã, s.d., BR RJANRIO PH.0.FOT.3633 - Dossiê


O certo é que no dia 13 de dezembro de 2022 comemoramos o centenário de nascimento do compositor e cantor pernambucano Luiz Gonzaga, conhecido como o “Rei do Baião”. Não por acaso, nesta data comemora-se o Dia do Forró, uma homenagem àquele que difundiu um imaginário sobre o Nordeste como bem apontou o historiador Durval Muniz Albuquerque Júnior:


Gonzaga foi, pois, o artista que, por meio de suas canções, instituiu o Nordeste como um espaço da saudade. Embora não aquele Nordeste com saudade da escravidão, do engenho, das casas-grandes; mas o Nordeste da saudade do sertão, de sua terra, de seu lugar. Saudade de seus cheiros, seus ritmos, suas festas, suas alegrias, suas sensações corporais. Saudade de migrante ou de homem de cidade, em relação a um espaço idílico onde homem e natureza ainda não se separaram; onde as relações comunitárias ainda estão preservadas, onde a ordem patriarcal ainda está garantida. Um Nordeste de hierarquias conhecidas e preservadas, mas também o Nordeste da seca, das retiradas, da súplica ao Estado e às autoridades por proteção e socorro. Um Nordeste humilde, simples, resignado, fatalista, pedinte. E, ao mesmo tempo, um Nordeste de grande “personalidade cultural”. Um lugar que quer conquistar um lugar para sua cultura em nível nacional, que quer mostrar para o governo e para os do Sul que existe, que tem valor, que é viável. O espaço da cultura brasileira contra as estrangeirices do Sul (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 164).


O caminho foi tortuoso, não raro o preconceito na Rádio Nacional, cuja etiqueta obrigava que os cantores vestissem o traje a rigor nas apresentações de auditório no Rio de Janeiro. Considerava-se que a vestimenta de cangaceiro, remetia à figura de Lampião e a seu bando, associando-o a marginalidade. A Rádio, ao adotar a cultura urbana, sobretudo carioca, buscou deslocar outras identidades. Assim, Luiz Gonzaga inovou ao adotar os trajes típicos do sertanejo nordestino, aliás que ele mesmo produzia, e percorreu o interior do Brasil apresentando-se com instrumentos como triângulo, zabumba e sanfona, apresentações que não se restringiam ao eixo Sul-Sudeste. E, assim, o chapéu de couro passou a figurar como uma marca pessoal durante décadas. Em que pesem as controvérsias da sua trajetória pessoal, tão bem discutidas e expostas em diversos trabalhos no teatro e no cinema com o seu filho adotivo Gonzaguinha, Luiz Gonzaga deixou um legado para a história da música popular brasileira e para a história do nosso Nordeste, bem como ajudou a difundir o trabalho de tantos músicos nordestinos. O chapéu de couro, a sandália de couro com sola de borracha, as rendas, os bordados etc... fazem parte de todo esse imaginário.



Luiz Gonzaga

Crédito da imagem: Itaú Cultural.




Referências:

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Intermeios, 2013.

CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10ª ed., Ediouro, Rio de Janeiro, 1998.

Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Rio Memórias. Disponível em: https://riomemorias.com.br/memoria/centro-luiz-gonzaga-de-tradicoes-nordestinas/ Acesso em: 15 dez. 2022.

GONZAGA, Luiz. Pau de Arara (música). Disponível em: https://www.discografiabrasileira.art.br/composicao/78810/pau-de-arara Acesso em: 15 dez. 2022.

Memorial Luiz Gonzaga. Disponível em: http://www.recife.pe.gov.br/mlg/gui/Biografia.php Acesso em: 15 dez. 2022.



*Luciene Carris é historiadora (UERJ).


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