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  • Foto do escritorLuciene Carris

Corpo e alma do Nordeste

Rio de Janeiro, 01 de novembro de 2022.

Luciene Carris*


Cheguei ao Rio de Janeiro no finalzinho dos anos de 1970, lembro-me bem de ter mudado com a minha família algumas vezes até me estabelecer no bairro onde moro desde 1981. Não é nenhuma novidade o legado daquele imaginário sobre a migração nordestina para outras regiões do Brasil, muito em razão da busca por melhores condições de trabalho e de vida. Livros, artigos, filmes, documentários e matérias de jornais diversos dão conta desse registro. Aliás, faço parte dessa história. Nasci em Campina Grande, na Paraíba, considerada a segunda maior cidade daquele estado, e filha de um jovem casal recém-saído dos vinte anos.


Segunda Classe, 1933, Tarsila do Amaral.

Disponível em Enciclopédia Itaú Cultural.


A curiosidade bateu repentinamente, fui pesquisar um pouco sobre o passado da minha família, tal como realizei recentemente para um livro publicado sobre a origem italiana da família do meu filho e o movimento operário no bairro do Jardim Botânico. Pois bem, a pesquisa empírica, ainda que breve, me levou a descobrir um pouco sobre assuntos que até então desconhecia, talvez negligenciados por mim e devidamente apagados da memória da família Silva. O fato é que o estudo das famílias diz muito sobre a nossa própria trajetória e a história do nosso país. Compreender esse passado, acredito que ajude a entender aspectos de muitas famílias disfuncionais e determinadas escolhas ou preconceitos, e daí possamos quem saber justificar para os mais jovens a importância do estudo da História e das Humanidades (essa com “H” maiúsculo, talvez seja ingenuidade minha quem sabe, fica a critério do caro leitor). Talvez aguce alguma curiosidade, uma qualidade inerente ao ser humano.


Mas, as conversas com alguns familiares mais próximos não me levaram a angariar fatos consistentes. Alguns se recusam a falar sobre esse passado, me perguntam qual a importância disso. De fato, foi exatamente isso que me levou a escolher a profissão de historiadora ainda menina: “qual a importância disso?”, “deixa isso para lá!”, “melhor não mexer nisso”. A verdade é que nasci ainda sob um regime de exceção, lembro bem que determinados temas não poderiam ser falados ou comentados nem dentro de casa, especialmente, do que se tratava a política e qual a importância dela nas nossas vidas.


Uma pista sobre as minhas origens familiares apareceu na plataforma Family Search International (FSI), que remonta a Sociedade Genealógica de Utah criada em 1869, vinculada à congregação dos mórmons, a Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias. A sua missão é “fomentar e incentivar o estudo e a investigação genealógica das famílias em diferentes países, no caso do Brasil a SGU guarda os registros coletados por Corregedorias de Justiça, responsáveis pelos cartórios de registro civil dos estados, dioceses, arquidioceses católicas, arquivos públicos e institutos histórico”.


Aliás, a título de curiosidade, a maior coleção de registros genealógicos está localizada em um cofre, que mantém sob a sua guarda 3.5 bilhões de imagens em microfilmes, microfichas e mídia digital de cerca de cem países. Neste acervo, localizei registros civis de nascimento e óbito da minha família paterna. O mais interessante foi localizar uma árvore genealógica da família, que remonta ao casal Manoel e Severina. Ele, nascido em Timbaúba, município de Pernambuco, em 1887, por sua vez, ela, nascida, em 1890, na Paraíba, não há registro do munícipio. Porém, curiosamente, não localizei maiores informações, a partir dos sobrenomes, sobre os antepassados da minha origem materna.


Apesar disso, depoimentos de familiares recuperaram outros fatos interessantes como a escolha da fé religiosa da minha avó materna. O fato é que recusara uma transfusão de sangue, apesar da triste moléstia que lhe afligia. Ao que parece, ela frequentava uma comunidade da Igreja Adventista do Sétimo Dia., em Baixa Verde, na região de Queimadas, no agreste paraibano, onde residia. Daí fui tentar compreender a sua implantação na Paraíba. Ao que tudo indica, chegaram na região por volta de 1938, e ao tentarem fundar uma escola primária adventista sofreram algumas retaliações dos segmentos católicos, como a tentativa de depredação do seu prédio, como ataques físicos a alguns indivíduos. É uma história interessante, que associada à mestiçagem indígena, podem trazer dados interessantes sobre a nossa história. Não raro um antepassado ainda relembrou uma avó da linha materna de origem indígena, cujos cabelos negros e lisos, talvez de origem cariri ou tarairiú, se misturam com algumas características africanas de alguns descendentes como os cabelos crespos. Talvez valha a pena investigar com mais calma e com mais tempo acervos e outras bibliografias.


O fato é que a família se deslocou para outras regiões como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, alguns ainda permanecem por lá. Muitos ocuparam e ocupam diversas funções como zeladores, faxineiros e mecânicos, e alguns descendentes, como eu, conseguiram ingressar em alguma universidade e se formar em algum curso superior com algum grau de dificuldade. Quando ouço por aí algum comentário xenófobo em relação ao Nordeste, sinto profunda tristeza, porque vejo o total desconhecimento da nossa História. Se por um lado, essa consternação toma um pouco do meu precioso tempo, revejo algumas posturas pessoais, e observo que o preconceito de alguns me motiva a seguir seja através deste blog de História ou de outro espaço como historiadora, pesquisadora e professora, que me garanta a oportunidade de produzir algum grau de reflexão e a consciência de que somos um país de origem indígena, africana e europeia.


Não adianta romantizar a democracia racial sem uma democracia social ou vislumbrar um passado europeu, que branqueia uma história pautada numa violenta colonização, que nos legou um racismo estrutural que ainda nos assombra. Como neste ano, comemoramos o centenário do nascimento de Darcy Ribeiro (1922-1987), um intelectual que procurou entender a formação étnica-cultural do nosso país,


(...) O mais espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que essa abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar uma espécie de miopia social, que perpetua a alteridade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis. (RIBEIRO, 2014, p. 13)



Referências:

CARDOSO, Luciene P. Carris. Histórias do Jardim Botânico: um recanto proletário na zona sul carioca. Rio de Janeiro: Telha, 2021.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Global, 2014.

Family Search International. Disponível em: https://www.familysearch.org/pt/ Acesso em: 30 out. 2022.

FIRINO, Daniel da Silva. Reconfiguração Religiosa da Paraíba (1911-1950): A Presença Adventista. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em História, UFPB, 2021.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).

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