Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 2022.
Janaína Lacerda Furtado*
Hypatia, ou Hipátia ou Hipacia, foi matemática, astrônoma e filósofa e nasceu na cidade de Alexandria, Egito, e viveu entre os anos de 350/370 e 412/415 D.C. Sua morte violenta coincidiu justamente com o fim do Império Romano, durante as turbulentas e violentas disputas que cercaram a conversão do Império para o cristianismo e à perseguição aos pagãos e não convertidos, como Hypatia.
Além de filosofia e matemática, Hypatia se interessava também por mecânica, e chegou a elaborar instrumentos, como o astrolábio plano, utilizado para medir a posição dos planetas, do Sol. Hypatia era, portanto, pagã e adepta do racionalismo grego, além de influente figura política, tendo sido professora de figuras eminentes da política alexandrina, como Orestes, amigo e ex-aluno, prefeito de Roma no Egito.
Quando os cristãos começaram a ocupar postos importantes na política, iniciou-se a perseguição e expulsão dos judeus da cidade e a pressão violenta para a conversão dos considerados pagãos. Hypatia, uma neoplatônica, recusou-se a abandonar suas convicções e a converter-se ao cristianismo, acabou perdendo a vida na sanguinária repressão aos neoplatônicos no ano de 412 D.C.
Durante muito tempo, Hypatia foi considerada como a ÚNICA mulher cientista da História, e, não faz muito tempo, era a única mulher mencionada nos livros de história da matemática e da astronomia. Em boa parte, sua fama se deu pela romantização de sua vida- refletida em biografias e filmes- e por ter sido elevada à categoria de símbolo do fim da ciência grega e o início da era de “caos e barbarismo” da Idade Média.
Hypatia de Alexandria (350/370- 415 D.C).
Mas não nos enganemos, essa narrativa tem uma história. História essa que remonta ao século XVIII, quando um seleto grupo de reformistas resolveu estabelecer a ciência como base da verdade, substituindo a ideia de que a verdade absoluta poderia ser conhecida através da religiosidade pela explicação mecanicista do mundo. Nesse momento as ciências naturais passam a serem vistas como medida da verdade humana, e, nesse processo, é natural que as narrativas do passado construídas por esse grupo escolhessem ícones científicos, e Hypatia foi uma dessas escolhas. Pois, observem bem: Hypatia não foi alçada ao panteão dos heróis científicos por ser mulher, mas sim por simbolizar a ciência grega, e a oposição à religiosidade medieval.
Outro problema é que além de masculina, a ciência, com frequência, é associada ao Ocidente- sobretudo Europa e, mais tarde, EUA- nesse sentido, o papel das mulheres na China ou nas antigas ocupações coloniais, por exemplo, somente agora começam a se descortinar. A visão heroica da ciência, que elevava os cientistas à categoria de gênios iluminados, foi colocada em xeque a partir de uma visão pluralista da história da ciência, que vem se desenvolvendo desde das décadas de 1970 e 1980 na Inglaterra, nos EUA e também em países da América Latina como o México, a Colômbia e o Brasil. Essa visão entende que existem maneiras distintas de conhecer e estudar o mundo- sendo a ciência apenas uma delas.
Outra renovação fundamental na historiografia das ciências foi o entendimento da construção do conhecimento como uma atividade coletiva, e que depende de uma rede de comunicação de ideias e de experimentos, além de uma vasta rede de sociabilidade. A elaboração de teorias e os avanços tecnológicos e científicos não acontecem do dia para noite e nem surgem na mente de “seres geniais” de maneira isolada. Para que haja um Albert Einstein, existem vários anônimos que também desenvolveram pesquisas, fizeram experimentos e elaboraram teorias.
Assim, muito embora as mulheres já estivessem atuando na ciência e, também, na ciência aplicada, sua presença, quando notada, é sempre registrada como uma “novidade”. Isso significa que a história das ciências e da construção do conhecimento é muito mais do que apenas nomes e teorias. É, na verdade, uma história de muitos, que contribuem para que os “grandes avanços” aconteçam e muitos desses são mulheres. Mulheres cujas trajetórias são inviabilizadas e relegadas ao esquecimento.
O trabalho científico inegavelmente requer, além dos pré-requisitos básicos, requer disponibilidade de tempo, formação especializada, criatividade, mas também, fundamentalmente, requer “redes”, já que se trata da atividade de um grupo que preencha certos requisitos, sendo, portanto, um grupo seleto de indivíduos, e quando tratamos de mulheres, esse grupo fica ainda mais seletivo.
As mulheres que se dedicam a atividade científica são, na maioria das vezes, mulheres em posição social privilegiada que as permite ter acesso à educação e a perseguir seus interesses científicos, apesar da exclusão em espaços como universidades, sociedades e academias científicas. Não sendo diferente com os colegas homens, em sua grande maioria também de classes mais abastadas. No entanto, mesmo vindos dos mesmos extratos socioeconômicos, as mulheres precisavam transpor mais obstáculos do que seus colegas homens para tornarem-se cientistas, e, não raro, as custas de suas vidas pessoais.
Os nomes de Hypatia ou de Marie Curie, portanto, surgem nas narrativas sobre a ciência e a produção do conhecimento como curiosidades, como um epifenômeno. Mas, o conhecimento e o acesso às mulheres cientistas e seus trabalhos que possuímos hoje representa apenas uma pequena fração do total de pesquisadoras e estudiosas, pois, devemos considerar aquelas que não tiveram acesso formal a espaços científicos consagrados, como universidades e academias científicas, mas àquelas que se dedicaram aos interesses científicos de todo tipo: naturalistas, colecionadoras, ilustradoras científicas, porque essas refletem a realidade histórica do interesse e aptidão das mulheres na ciência de maneira contínua e não como uma excepcionalidade.
Mas, como a maioria das narrativas foram escritas por homens e as publicações são igualmente dominadas pelo gênero masculino, a contribuição das mulheres foi gradualmente sendo ignorada. E, não raro, muitas tiveram sua autoria negada ou usurpada por algum colega, discípulo e até pelo marido.
O que esse pequeno ensaio pretende é desconstruir, a partir de algumas leituras, infelizmente, em sua grande maioria não traduzidas para o português, a imagem de que as mulheres são um fenômeno recente na produção do conhecimento. Pretendi iniciar uma discussão sobre como longe de ineptas ou desinteressadas, as mulheres foram durante muito tempo inviabilizadas e interditadas nos espaços acadêmicos-científicos, mas estavam lá o tempo todo, mas à medida que o interesse e a atuação das mulheres começaram a aumentar, mais afirmações sobre a incapacidade, inclusive biológica, das mulheres para a ciência e a tecnologia se tornaram mais veementes.
Construiu-se a ideia de que a ciência e a tecnologia, e, sobretudo as ditas ciências exatas e as engenharias, seriam um domínio masculino, algo inerente, algo “natural” do gênero masculino, sendo o interesse feminino algo “exótico”. Com o avançar da associação da ciência e da tecnologia com as ideias de progresso material e civilização, e, posteriormente, já no século XX, com o avançar da indústria e da tecnologia, criou-se a ideia de que esses eram “assuntos de homens”, a bem dizer, homens brancos, ocidentais, europeizados e Cis.
Mas as herdeiras de Hypatia reagimos contra essas narrativas elaboradas sobre a inferioridade das mulheres em relação aos homens, seja nas ciências, ou em qualquer coisa, e demonstramos que mulheres podem, sim, mudar o mundo.
* Janaína Lacerda Furtado é Pesquisadora Consultora da UNESCO\MUSEU NACIONAL-UFRJ, Doutora pelo IFCH-UERJ.
Referências Bibliográficas:
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COSTA, Maria Conceição da, LOPES, Maria Margaret. Problematizando ausências: mulheres, gêneros e indicadores na História das Ciências. Gênero nas Fronteiras do Sul. Pp.75-83, 2005.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru/ SP: EDUSC, 2005.
SCHIEBINGER, Londa. Women in Science. Historical Perspectives. Women at Work: A Meeting on The Status of Women in Astronomy. Maryland, September 8-9, 1992.
Texto incrível!