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  • Foto do escritorLuciene Carris

Salve o Caboclo! Salve a Cabocla!

Atualizado: 3 de jul. de 2023

Rio de Janeiro, 02 de julho de 2023.

Luciene Carris*


No dia 2 de julho de 2023, o Brasil comemora os 200 anos da Independência na Bahia, marcando a expulsão do Exército Português dessa província. Essa história é pouco conhecida pelos brasileiros, mas deixou um legado de heróis populares, tanto homens quanto mulheres. A Declaração da Independência, um evento político ocorrido em 07 de setembro de 1822, foi por muito tempo ensinada nos livros didáticos como um ato exclusivo de Dom Pedro I, ocorrido às margens do rio Ipiranga, em São Paulo. Além disso, ainda se especula as razões pelas quais o evento do Grito da Independência ocorreu ali naquele local, assim como a questão sobre se Dom Pedro I estava montado em um cavalo ou em um burro, bem como o suposto mal-estar intestinal que ele teria sentido na ocasião, especulações que deram, e ainda dão, uma certa comicidade ao acontecimento histórico.






No entanto, desde 1888, uma representação consagrada e amplamente difundida desse momento foi registrada no quadro do artista Pedro Américo, que podemos encontrar no salão nobre do Museu Paulista. A pintura de Pedro Américo seguiu o estilo acadêmico da época, e se inspirou em obras de pintores franceses e italianos, a exemplo da figura de Napoleão Bonaparte retratado pelo pintor francês Jean-Louis-Ernest Meissonier, além das pinturas sobre as guerras italianas ocorridas entre 1855 e 1868. De fato, tais influências contribuíram para a criação de uma representação majestosa e teatralizada do Grito da Independência do Brasil, ao mesmo tempo em que demonstrava o conhecimento e a erudição do pintor sobre as pinturas históricas. Aliás, vale a pena a leitura de um outro texto do Box Digital de Humanidades de autoria de Carlos Eduardo Pinto de Pinto sobre o tema sobre a monumentalizaçao de D. Pedro, em razão das comemorações do Bicentenário da Independência.


Durante muito tempo, as interpretações difundidas sugeriram que as guerras que ocorreram em várias províncias do território brasileiro entre 1822 e 1824 foram um processo pacífico, sem grandes rupturas e isolado do restante do mundo. Essa visão contribuiu para disseminar um imaginário sobre as guerras da Independência como algo pontual ou até mesmo insignificante. Porém, pesquisas mais recentes têm evidenciado que as guerras da Independência foram marcadas por conflitos em diferentes regiões do país, e que envolviam diversos interesses políticos e econômicos, bem como diferentes camadas sociais.


Os conflitos não foram casos isolados ou desprovidos de conexões com o contexto internacional da época. Na verdade, a Independência do Brasil se inseria em um contexto de transformações políticas e sociais, que estavam ocorrendo ao redor do mundo, como os movimentos de independência no contexto da América do Sul, bem como a nova configuração política com o fim das guerras napoleônicas na Europa. Além disso, é importante mencionar as disputas internas entre as diferentes regiões do território brasileiro pelo seu protagonismo político no processo da Independência, que negligenciou o papel de outras províncias, em especial do Norte (hoje Norte e Nordeste) subestimados numa historiografia canônica até então.


O fato é que uma guerra ocorreu na província da Bahia durante cerca de 17 meses, mais precisamente entre fevereiro de 1822 e julho de 1823. Aliás, durante muito tempo, houve uma disseminação da ideia de que a história do Brasil era caracterizada por uma ausência de grandes guerras ou lutas, o que contribuiu para a mitificação de um povo pacífico, bem como procurou destacar uma galeria da Independência de heróis brancos e masculinos, membros de uma certa elite política ligada ao Sul do país.


Em 1822, a Bahia, com uma população de 765 mil habitantes, ocupava a terceira posição em termos de população entre as províncias do Brasil, depois de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Além disso, era considerada o segundo maior centro comercial de toda a América do Sul, exportava produtos como açúcar, algodão, tabaco e outros produtos agrícolas. No entanto, a atividade predominante na região era o tráfico negreiro, aliás, estima-se que cerca de 524 mil de seus habitantes eram de escravizados. A guerra se iniciou na Câmara da cidade de Cachoeira, quando se reconheceu a autoridade do príncipe regente D. Pedro, em seguida outras cidades aderiram à causa da Independência.


Durante o conflito, as batalhas contaram com a participação de várias figuras, tais como Antônio Pereira Rebouças, um engenheiro militar e deputado negro, cujos relatos em diários são uma valiosa fonte de informação sobre sua participação no evento. Além disso, temos o general francês Pierre Labatut e o almirante inglês Thomas Cochrane. Cochrane, embora tenha comandado a Primeira Armada Nacional e Imperial, e inicialmente tenha sido considerado um herói, foi posteriormente envolvido em controvérsias e acabou sendo excluído das galerias dos heróis.


Apesar disso, seu nome ainda ocupa um lugar importante na história, em detrimento de outros personagens esquecidos ou negligenciados das camadas populares como negros libertos ou escravizados, indígenas e de muitas mulheres como Maria Filipa, Maria Quitéria e Joana Angélica, que atuaram como verdadeiras heroínas, indo para o front durante os conflitos, oferecendo assistência médica e alimentação aos soldados, além de desempenharem um papel estratégico na vigia das tropas inimigas. Suas contribuições não devem ser negligenciadas ou esquecidas, pois foram fundamentais para a causa nacional. Outras figuras também relevantes são o cacique Bartolomeu Jacaré e o Corneteiro Lopes, que mudou de posição no conflito, e aderiu a causa nacional.


A cidade de Salvador, sitiada e proibida a entrada de alimentos, venceu uma longa batalha dispendiosa e que custou a vida de muitos na luta, por doenças e pela fome. As comemorações em Salvador têm forte participação popular, atraindo milhares de pessoas, para o desfile de carros do Caboclo e da Cabocla, cuja tradição remonta ao ano de 1824, quando ocorreu o primeiro cortejo, e destaca a presença indígena e afrodescendente no episódio, uma forma também de valorizar a nossa origem étnico-cultural.


No Rio de Janeiro, algumas ruas prestam homenagens aos heróis e heroínas baianos. Essa escolha não foi feita de forma aleatória. Em razão das Comemorações do Centenário da Independência, em 1922, o prefeito Carlos Sampaio decidiu alterar os nomes originais de algumas ruas do bairro de Ipanema, que ainda estava em franco processo de expansão. Essa decisão pode ter sido influenciada pelo fato de que o prefeito Carlos Sampaio havia morado em Salvador, quando foi diretor das Docas da Bahia.


Assim, nos deparamos com as ruas que homenageiam os irmãos Visconde de Pirajá (Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque), conhecido como “Coronel Santinho”, Barão de Jaguaripe (Francisco Elesbão Pires de Carvalho e Albuquerque) e Barão da Torre (Antônio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque). Também encontramos a rua Joana Angélica, a abadessa que dirigiu o Convento da Lapa, assassinada quando tentou impedir o ingresso de soldados portugueses no local. A rua Maria Quitéria presta uma homenagem à primeira mulher a integrar o Exército Brasileiro, disfarçando-se de homem, pois era vedado o ingresso feminino. O monumento do Corneteiro Luis Lopes, que participou da Batalha do Pirajá, cuja trajetória depois da guerra ainda é um enigma. Por sua vez, o nome de Garcia D´Ávila embora não esteja associado ao processo da Independência, decorre dele ter sido um colonizador português do século XVI, que construiu uma residência, conhecida como Casa da Torre, que funcionou como forte e posto de vigilância, uma base militar durante o conflito na Bahia.


Desse modo, ao caminhar pelas ruas das cidades e prestar atenção aos monumentos e placas de ruas, podemos descobrir novos aspectos e detalhes interessantes sobre a história do Brasil e da cidade, sobre a memória e sobre o patrimônio cultural. Além disso, podemos refletir sobre a escolha de homenagear algumas figuras em detrimento de outras, e de compreender como certas narrativas foram selecionadas. Cortejos e festejos populares são celebrações importantes, que refletem as marcas da memória e evidenciam uma conexão afetiva com o passado, e é uma forma interessante de incentivar o gosto pela História.



Referências:


ALBERGARIA, Danilo. As raízes do quadro Independência ou Morte! Historiadora identifica as obras francesas e italianas que inspiraram o pintor Pedro Américo. Brasil 200 Anos. Revista FAPESP, São Paulo, ed. 318, ago. 2022. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/as-raizes-do-quadro-independencia-ou-morte-2/ Acesso em: 30 jun. 2023.


ARTUR, Francisco. 2 de julho: como a “mulan brasileira” protegeu a independência do Brasil. Correio Braziliense, seção História, 02/07/2023. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/07/5105498-2-de-julho-como-a-mulan-baiana-protegeu-a-independencia-do-brasil.html Acesso em: 02 jul. 2023.


PEIXINHO, Liliana. A guerra que orgulha a Bahia. Revista Desafios do Desenvolvimento, IPEA, Brasília, 2015, ed. 85, ano 12. Disponível em: https://encurtador.com.br/hsHP3 Acesso em: 30 jun. 2023.


PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Entre o coração e a espada: a (des)monumentalização de D. Pedro 1. Disponível em:


TAVARES, Luís Henrique Dias. Independência do Brasil na Bahia. Salvador: EDUFBA, 2005.



*Luciene Carris é historiadora (UERJ).



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