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Sabe de nada, inocente! Entre percursos e percalços.

Toronto, 01 de fevereiro de 2022.

André Sena*


Existe um sem-número de pensadores, escritores, poetas e estetas que abordam a questão da inocência humana de maneira exuberante e virtuosa. Exaltada até mesmo nos Evangelhos, que se tornaram com o passar dos séculos um corpo de textos fundador – embora não o único - do que experimentamos ainda hoje no Ocidente como modo de vida, ela é comparada aos lírios do campo, superiores ao requinte da corte de Salomão. Deve ser protegida e cultivada ao longo da vida como um tesouro, capaz de nos proteger das maldades de um mundo alquebrado como o nosso. Serve, portanto, ao mesmo tempo como escudo e ornamento ao melhor a que deve sempre o homem buscar.


Crédito: Jornal O Globo.



Será mesmo? Não é exatamente isso que pensa Publílio Siro, pensador romano que produziu suas famosas sentenças morais (sententiae) nas décadas iniciais do primeiro século da Era Comum. Viveu provavelmente entre os anos 85 e 43. Escravo trazido para Roma de uma região que na época chamava-se Síria-Antioquia, recebeu de seu proprietário alforria e educação, tornando-se um dos mais luminosos cidadãos do Império Romano. Deixou muito claro em seus escritos que a inocência só pode de fato frutificar em uma vida distanciada do convívio com as pessoas que compõem a sociedade. Viver na relação com pessoas, implica necessariamente um processo de perda da inocência, ou como ato de vontade própria e autodefesa, ou como resultado das micro e macro agressões que marcam o viver cercado de gente por todos os lados.

Na obra Ditos Morais, Siro é categórico: “Se queres viver tua vida inocentemente, busca a solidão.” Essa sim me parece, graças ao mais famoso dos escravos romanos depois de Espártaco, (que como Siro também não era romano, o que talvez os tenha capacitado a não cair na inocente armadilha acerca de uma civilização, que já naqueles tempos via a si mesma como o melhor dos mundos possíveis) uma regra dourada para a vida, algo que eu pessoalmente tive imensas dificuldades em absorver, embora nunca tenha me furtado a transmiti-la aos meus alunos, durante os anos em que lecionei relações internacionais no Brasil.

Recordo-me de uma ocasião há alguns anos em que fui convidado a participar como professor orador, de uma cerimônia de formatura por meus alunos. Era o ano de 2017. Inspirado em diferentes teorias das relações internacionais e ao mesmo tempo na reflexão de Publílio Siro, ofereci a meus alunos um conselho para seu futuro como profissionais no mercado de trabalho. Dei a eles três possibilidades de escolha, baseadas em três escolas diversas de pensamento teórico de RI: o Realismo, o Idealismo ou o Construtivismo. Cabia-lhes escolher uma das três e em seguida eu lhes daria o aconselhamento.

Depois de algum silêncio, tanto dos alunos como do público presente, um dos formandos, em um ato de bravura e rompendo a barreira do constrangimento gritou: o Realismo, Mestre! Retirei de meu bolso um dos três breves conselhos que havia preparado, selecionei o que correspondia à escola de Hans Morgentau e aconselhei: “o que lhes aguarda a partir de hoje será competição, rivalidade, e a busca pela maximização de poder, a fim de defender seus próprios interesses. Preparem-se para um ambiente profissional cheio de regras e ao mesmo tempo essencialmente anárquico, onde o esforço e a produção não serão os únicos fatores levados em consideração. Há um jogo que é tudo, menos inocente, diante de vocês.”

Depois dos aplausos que podem ter denunciado a incapacidade de compreensão do meu conselho, diante da atmosfera festiva e inebriante de uma formatura (o que é absolutamente compreensível depois de quatro anos de estudos!) sentei-me e me dei conta de que desde 2002, quando iniciei minha carreira como professor, até aquele presente momento, era a primeira vez que me convidavam para uma formatura, embora eu sempre tenha sido um professor muito popular e aparentemente querido tanto por colegas como por discentes.

Essa conclusão matemática que tomou de assalto o meu pensamento me desligou do resto da cerimônia, devido a lembranças que me chegavam à cabeça. Lembrei, por exemplo, de um episódio que se passara anos antes disso, em uma outra universidade onde lecionara. Eram os primeiros anos do século XXI e aos 27 anos, eu havia assumido publicamente o que naquele momento entendia ser a minha orientação sexual: gay. Ter tornado pública o que naqueles anos eu compreendia como sendo minha homossexualidade foi um ato de coragem, mas ao mesmo tempo de libertação, carregado de entusiasmo e de uma inocência que deixariam Publílio Siro et capillum in finem, ou seja, de cabelo em pé. Saí do armário direto para a militância e para o ativismo, confundindo instrumento com concepção, e ao mesmo tempo substituindo um processo de autoconhecimento profundamente íntimo e pessoal por uma causa geral. A inocência tem seu preço.


Acervo pessoal.



Certo dia, um aluno, de forma muito discreta e visivelmente constrangido se aproximou de mim após a aula e disse: “professor, sua foto está no Caderno Zona Sul do Jornal O Globo de hoje!” O rapaz fez questão de me dar a notícia em voz baixa, como que me protegendo do que poderiam pensar os outros. Estarrecido, eu respondi que ele não precisava ser tão cuidadoso, afinal O Globo era um veículo de comunicação de alcance nacional, e que se eu tivesse medo de me expor não teria me deixado apanhar por jornalistas nas circunstâncias da foto e da matéria que ele vira ao acordar naquele dia e abrir o jornal.

Assim como meu aluno, meus pais também abriram o jornal naquela manhã. Ambos sabiam de minha orientação sexual, foram eles os primeiros com quem falei, o que não foi nem fácil nem desagradável. No mesmo dia da matéria, minha mãe me ligou e perguntou se o grupo de ativismo do qual eu fazia parte tinha algum programa ou atividades para pais de LGBT. Antes de responder que sim perguntei por que, e mamãe foi de uma assertividade na resposta que deixaria Publílio Siro standibus plaudentibus, ou seja, aplaudindo de pé: “porque agora eu vou ter que aprender a te defender.”

Foi também ela que nove anos depois disso, magoadíssima, me alertou para o fato de que desde que havia me casado, em 2009, nunca mais havia recebido nenhum convite para ocasiões ou festas de família. Meu nome simplesmente não fazia parte das listas, embora a comunicação cordial com familiares nunca tivesse sido interrompida.

Essa foi a razão pela qual eu sequer percebi que passaram a não mais me chamar para o almoço de Dia das Mães, que reunia minha mãe, tias, tios e primos, para o do Dia dos Pais (mesmo rito), Natal, Ano Novo, Páscoa...tudo cessara. Foi apenas no terceiro ano de casamento que minha mãe abriu meus olhos, retirando de mim a inocência. Acho que o entusiasmo gerado pelos primeiros anos de vida conjugal me deixou totalmente focado em minha própria vida cotidiana. Entretanto tudo ficou absolutamente explícito algum tempo depois, quando meu tio e primo se esconderam em um dos corredores do hospital Panamericano, na Tijuca, para não ter de se encontrar comigo e meu companheiro, quando de uma visita que fizemos a uma tia doente, que por sua vez havia desaconselhado sua filha e neta de frequentarem a minha casa. “Na minha família não tem viado.”, teria dito um de meus primos, um pouco mais velho que eu, ao contar o episódio do hospital para a empregada da casa no dia seguinte, que imediatamente reportou o ocorrido por telefone, sei lá com que propósito, a minha mãe.

Quando saí do armário para a militância deixei-me dominar pela inocência sobre a qual Publílio Siro tanto me alertou. Achei que o impacto de minha atitude não teria nenhuma repercussão sobre minha vida e carreira acadêmica, e o que é ainda mais ingênuo: que minha decisão inspiraria gerações mais jovens que a minha, podendo inclusive gerar reconhecimento e respeito profissional. Isso pode até ter acontecido em graus diferentes, mas muito mais do contrário disso se produziu em minha vida como professor e historiador, tudo sem que eu tivesse condições de reagir na rapidez necessária ou com provas concretas, algo que ainda segue seu curso, especialmente na esfera brasileira.


Acervo pessoal.


Hoje sei o quanto minha inocência teria deixado o escravo-filósofo romano maxilla fluens, ou seja, de queixo caído, e fico as vezes pensando em quantas oportunidades acadêmicas, profissionais e sociais me foram delicadamente negadas, não apenas por eu ser da comunidade LGBT, mas pelas formas que escolhi para verbalizar isso. Não me confundam com uma Madalena Arrependida, expressão horrorosa que só mantenho aqui pela beleza da pintura de Caravaggio. No meu entender, que pode não ser o seu, não existem, pelo menos até agora, armas possíveis contra a homofobia: existem apenas mecanismos de contenção. Eu escolhi os meus; se for o caso, escolha os seus; e se desejar, siga o conselho de Publílio Siro: seja o menos inocente possível; quanto mais cedo, melhor.


*André Sena é historiador (UERJ).


REFERÊNCIAS:

SYRUS, Publilius. The Moral Sayings of Publius Syrus: A Roman Slave.Martino Fine Books, 2004.

SENA, André Luis P. Dizem que Sou. Narrativas e Relatos da Homofobia Carioca. Ed. Metanóia, 2013.


SUGESTÕES:

ISAY, Richard. Tornar-se Gay. O Caminho da Auto-Aceitação. Editora GLS – Grupo Summus, 1998.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. A Homossexualidade Masculina no Brasil. Da Colônia a Atualidade. Ed. Record, 1999.

GREEN, James. Além do Carnaval. A Homossexualidade Masculina no Brasil do Século XX. 2ª Edição. Unesp, 2019.

GREEN, James. CAETANO, Márcio. FERNANDES, Marisa. História do Movimento LGBT no Brasil. Alameda Editorial, 2018.

ERIBON, Didier. Reflexões sobre a Questão Gay. Ed. Companhia de Freud, 2008


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