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  • Foto do escritorLuciene Carris

Reflexões sobre um bicentenário

Rio de Janeiro, 06 de setembro de 2022.

Luciene Carris*


Em texto publicado em 1992, a historiadora Maria Lígia Coelho Prado destacou a participação das mulheres nas lutas pela independência política da América Latina. Aliás, na ocasião, evidenciou que o tema das independências políticas abrangia os historiadores da América Latina, não se restringia, portanto, ao Brasil. De acordo com o dicionário, efeméride significa celebrar uma data ou acontecimento importante. Relembrar o passado é um elemento crucial para qualquer senso de identidade, sem dúvida. Mas como recordar o papel de determinados segmentos ignorados e que tiveram algum envolvimento no processo da independência?



Crédito: WIX.


Em razão da celebração do bicentenário, muitos eventos, podcasts, livros, ensaios e artigos, etc, estão sendo organizados, diversos estudos trazem à baila a contribuição de mulheres, de negros e indígenas no episódio que marcou a história do Brasil. Contudo, no imaginário popular, ainda se restringe a Independência do Brasil ao Grito do Ipiranga no dia 07 de setembro em São Paulo. Há de se destacar a complexidade do processo, como o envolvimento de outras províncias e o protagonismo de determinados grupos. Além disso, cabe acrescentar que não podemos ignorar a construção de um sedimentado imaginário construído sobre a história do nosso país pautado na ideia da ausência de grandes lutas, como a que ocorreu na Bahia, que contou com forte adesão popular. Ainda se propaga um discurso de conformidade, de aceitação e de tranquilidade do desenrolar dos eventos, como se as paixões, as insatisfações e os interesses dos indivíduos não tivessem um papel significativo. Apesar da desconstrução em marcha, ainda é possível ouvir pelas ruas a disseminação de tais falas. Contudo, como apontou o historiador Sérgio Guerra Filho,


Há uma quantidade razoável de episódios de rebeldia popular que abalaram o que se chamava de “ordem e sossego público”. Ocorreram levantes de escravos, de grupos indígenas e de pobres livres que demarcam as tensões sociais que marcaram a guerra contra os portugueses. Entre novembro e dezembro de 1822, índios Aramarizes – recentemente dispensados do Exército Libertador – saquearam e atacaram o povoado de Água Fria, para horror das autoridades baianas. Ainda em novembro de 1822, cerca de 200 escravos atacaram as linhas brasileiras. Depois de derrotados, 51 deles foram fuzilados a mando do General Labatut (GUERRA FILHO, 2022).


Como destacou Gladys Sabina Ribeiro, o povo e a tropa estiveram presentes durante todo o processo e nos movimentos políticos que se sucederam nas ruas da capital e de outras províncias no Primeiro Reinado. A sua atuação não se limitava “como elemento figurante, mas conduzindo conjunta e efetivamente os fatos, gritando palavras de ordem em defesa de uns e de outros, verdadeiros motes que incitavam atitudes diferenciadas de acordo com as circunstâncias, com o que estava em jogo e sendo pleiteado pelas variadas facções” (RIBEIRO, p. 30, 2002). Mas, há uma distinção clara sobre determinados grupos que buscavam o caminho pela liberdade, aliás um conceito controverso. A resolução da problemática da autonomia política não implicou a inclusão e a extensão da cidadania para negros, indígenas e mulheres, pelo contrário se manteve a estrutura social vigente, assim, avesso às rupturas, a ordem escravocrata governada pela Dinastia dos Bragança permaneceu inalterada, uma vez que:


Era constante o medo da anarquia e das rebeliões das ruas. Em xeque, de forma mais imediata, a parcela dita negra da população. Os políticos “brasileiros” invocavam em sua defesa os discursos da barbárie dos africanos e dos negros, em geral, além dos episódios sangrentos que sacudiram São Domingos em finais do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX (RIBEIRO, p. 30, 2002).


Recentemente foi publicada uma coletânea, que evidencia o papel de sete mulheres presentes no ciclo de lutas pela Independência. Organizado pelas historiadoras Heloísa Starling e Antonia Pellegrino, o livro A voz pública das mulheres: um lugar na história apresenta a contribuição da única mulher que participou da Conjuração Mineira, Hipólita Jacinta Teixeira de Melo (1748-1828); da primeira cearense presa por convicções políticas, Bárbara de Alencar (1760-1832); da baiana poliglota Urânia Valério (1811-1849); da pescadora negra baiana Maria Filipa de Oliveira (1799/1800-1873); da soldada Maria Quitéria de Jesus (1792-1853) e da imperatriz austríaca Maria Leopoldina (1797-1826). Além disso, apresenta um posfácio da jurista Carmem Lúcia Rocha, ministra do Supremo Tribunal Federal. Apesar da originalidade e da importância da obra, observamos ainda as formas de silenciamentos de tantas mulheres, que certamente tiveram os seus registros, bem como a sua participação em diversos episódios apagados das páginas dos livros de história. Como bem destacou as autoras, “a vedação ao acesso da mulher ao público foi de tal forma enraizada na sociedade que se mantém no centro da desigualdade de gênero até hoje”.


Desse modo, penso que a importância de rememorar a tão divulgada efeméride está na possibilidade de repensar a nossa própria história e a possibilidade de transformar a nossa realidade, e, assim, buscar novos meios de alcançar uma sociedade mais democrática, justa e igualitária, menos excludente. Não se trata aqui da exaltação de um nacionalismo raso. Para muitos, “a comemoração, como um ritual, constitui uma narrativa, é atravessada e constituída por um enredo, é uma forma de fazer ver e de dizer o passado” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 187). Portanto, o Bicentenário da Independência do Brasil constitui um momento crucial para a sociedade brasileira, não implica meramente a evocação de um passado longínquo, mas a possibilidade de construir um novo futuro com a participação da sociedade.


Referências:

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O Tecelão dos Tempos (Novos Ensaios de Teoria da História). São Paulo: Intermeios, 2019.

GUERRA FILHO, Sérgio. A Independência e o protagonismo popular. Disponível em: https://bicentenario2022.com.br/textos/ Acesso em: 06 set. 2022.

PRADO, Maria Lygia Coelho. Em busca da participação das mulheres nas lutas pela independência na América Latina. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 12, n.23-24, p. 77-90, set.91/ago.92.

RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo de liberdade e a participação de homens livres pobres e de “cor” na Independência do Brasil. Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 58, p. 21-45, dezembro/2002.

STARLING, Heloísa; PELLEGRINO, Antônia. A voz pública das mulheres: um lugar na história.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).

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