Guarulhos, 01 de julho de 2022.
Luzimar Soares*
Desde muito pequena, construí um desejo e algumas certezas: desejo de ser dona do meu corpo; e a primeira certeza foi a de que teria que lutar muito para conseguir isso. A segunda foi de que não seria uma luta fácil. E a terceira foi de que, muitas vezes, o sistema inteiro estaria contra mim, e, quando falo de sistema, estou me referindo às questões legais mesmo.
The Handsmaid’s Tail: O Conto de Aia, Margareth Atwood.
Crédito da Imagem: Pinterest.
Por que sempre acreditei nisso? Bem, na minha infância, briguei muito, por mim e por minhas irmãs. Na maioria das vezes, as brigas se davam com os meninos que tentavam se impor através da força bruta. Isso exigia de mim a criação de estratégias para me desvencilhar das armadilhas e conseguir vencê-los. Mas, esses embates sempre me faziam ter mais certeza de que aquelas eram as primeiras de muitas batalhas que eu teria que travar.
Nossas posições políticas sempre nos colocam em lugares de disputas e, por esta razão, depois de adulta, entrei em vários debates acerca do corpo feminino, pois, hoje, já não me importo só com meu corpo e os das minhas irmãs, mas com os corpos de todas as mulheres. Nos últimos anos, vivemos sob retrocessos em muitas áreas no país, uma delas, certamente, está ligada aos direitos femininos.
Somos ensinadas desde pequenas que não somos donas de nossos corpos, haja vista, sempre somos “orientadas” que precisamos fechar as pernas, usar roupas “adequadas”, sermos educadas, mas algo ainda pior, somos o tempo todo obrigadas a agradar os “tios”. São exatamente esses os que mais abusam das meninas e mulheres, são os mais próximos que deveriam cuidar e zelar que estupram e, também, matam.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, através do seu anuário, mostram que o advento da covid – 19, que provocou o isolamento das pessoas, contribuiu para o aumento dos números de estupro. Caiu bruscamente no primeiro mês, mas, no segundo mês de isolamento, subiu muito, ou seja, a convivência diária com os protetores culminou com o estupro das mulheres que deveriam ser protegidas.
Quando analisamos os registros por mês de ocorrência de casos de estupros e estupros de vulnerável no ano passado percebemos uma queda brusca em abril de 2020, o primeiro mês de isolamento social de prevenção à pandemia de Covid-19, que volta a crescer fortemente em maio.
O mesmo estudo mostra em gráfico como esses dados funcionaram, além de chamar atenção para o fato de ainda não ser possível diagnosticar se realmente houve uma diminuição dos casos de violência, ou, se as mulheres não conseguiram denunciar em razão das peculiaridades do momento vivido, onde, os órgãos não estavam adequados ao atendimento remoto. Além disso, se as agressões acontecem no âmbito doméstico, e a vítima está no mesmo ambiente que seu algoz sem a possibilidade de pedir por ajuda, como ela faria essa denúncia?
A violência do estupro é extremamente cruel. Quando se trata de vulneráveis, é ainda mais excruciante. As meninas são expostas a dores que jamais conseguirão esquecer, trabalhar essas dores é dificílimo e, invariavelmente ouvimos das “pessoas de bem”, que o estupro acontece porque “os homens não conseguem se controlar”. Ora, mas que absurdo de frase é essa?
O ano de 2021 foi muito violento para as mulheres de acordo com matéria publicada pelo jornal G1 em 07 de março de 2021, a cada 10 minutos uma mulher é estuprada: “Em 2021, o Brasil registrou um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas, segundo um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) publicado nesta segunda-feira (7), véspera do Dia Internacional da Mulher”. Nesse mundo de atrocidades contra os corpos femininos, vemos meninas sendo obrigadas a carregarem gestações para não “agredirem as famílias de bem”.
De acordo com o Artigo 128 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940, temos o seguinte texto:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
O que significa dizer que desde de 1940, a mulher tem o direito de interromper a gestação em caso de estupro, mas há dois anos, assistimos estupefatos os ataques que uma criança sofreu para ter direito de fazer um aborto legal, inclusive teve que mudar de domicílio, contar com proteção da justiça, além de ter que ser levada para o hospital dentro do porta-malas do carro, para que os fundamentalistas não impedissem sua entrada no hospital.
Eis que, agora, vemos a história se repetir, dessa vez um tanto quanto mais cruel, haja vista, duas mulheres, uma Juíza e uma Promotora conspiraram para que a menina não pudesse efetivar a interrupção da gestação. A criança foi mantida em um abrigo como forma de cercear o direito dela. Em vídeo divulgado nas mídias sociais, a Juíza pergunta se a criança “aguenta mais um pouquinho”. A crueldade disso, é tamanha que fica difícil de falar sobre.
Até quando nossos corpos não nos pertencerão? Continuaremos a sermos corpos dos outros nas práticas diárias, mesmo que não mais sejamos nas leis? Sem contar com as formas encontradas pelos defensores dos estupradores de culpabilizar a vítima. O último episódio que teve repercussão nacional, a jovem Mariana Ferrer, dopada e estuprada, teve sua vida devassada, e foi sistematicamente culpabilizada e no final de um julgamento nojento e grotesco, o agressor foi inocentado “por falta de provas”.
Esse pequeno texto é apenas um pedido de socorro, somos sufocadas diariamente, somos ameaçadas, silenciadas, subjugadas, diminuídas, nossos corpos são fetichizados, vendidos mesmo quando sequer nos damos conta disso. Muitas vezes, sequer conseguimos respirar de tanto que dói. Não precisamos carregar fetos de estupradores, como está circulando nas redes sociais: criança não é mãe, estuprador não é pai.
Hoje, assim como sempre, precisamos de sororidade, de amizade, de parceria, de acolhimento, de respeito e especialmente de nos tornarmos donas de fato e de direito dos nossos corpos, vivermos nossas vidas para nós.
Referências:
Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A violência contra meninas e mulheres no ano pandêmico. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/6-a-violencia-contra-meninas-e-mulheres-no-ano-pandemico.pdf. Acesso em: 23 de jun. de 22.
Brasil teve um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas em 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/dia-das-mulheres/noticia/2022/03/07/brasil-teve-um-estupro-a-cada-10-minutos-e-um-feminicidio-a-cada-7-horas-em-2021.ghtml. Acesso em: 23 de jun. de 22.
Decreto Lei nº 2.848. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/91614/codigo-penal-decreto-lei-2848-40#art-128. Acesso em: 23 de jun. de 22.
LEI Nº 14.245, disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.245-de-22-de-novembro-de-2021-361261673. Acesso em 23 de jun. de 22.
*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).
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