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  • Foto do escritorLuzimar Soares

Os corpos invisíveis

Guarulhos, 15 de outubro de 2022.

Luzimar Soares*


Na contemporaneidade, tem aumentado muito a necessidade de alguns setores da sociedade (ou talvez esta seja uma percepção minha) mostrarem que são importantes, ou de que são detentores de poderes atribuídos pelo status conferido através de posição financeira. Sendo assim, buscar compreender as colocações, mas especialmente, o ocultamento de certos corpos me parece bastante importante.


Pensar o presente exige um esforço para um retorno ao passado, afinal, somos construções edificadas ao longo da História. Os valores sociais foram urdidos pelas sociedades, modificados ao longo do tempo, bem como, de acordo com o estudioso José Carlos Rodrigues, a apropriação do corpo como hoje é dada, foi desenvolvida socialmente.


A separação de corpos e de individualidades que a história ocidental vem exibindo não se refere apenas ao contato entre cadáveres, nem às relações entre estes e os vivos. Não é apenas táctil e não se verifica exclusivamente na morte. Está sobretudo na vida, é também visual, olfativa, gustativa, auditiva... No decorrer desta história, os diferentes sentidos vão gradativamente manifestando-se na delimitação das fronteiras disso a que se poderá chamar ´meu corpo individual`. Esse trabalho contínuo de demarcação de territórios individuais está associado às práticas mais concretas do cotidiano e ilustra cristalinamente que existe uma história da apropriação privada do eu, assim como há uma história da propriedade dos bens de produção.


Se passamos a individualizar e nos apropriar dos nossos corpos tal qual dos meios de produção, então, os corpos adquiriram valor. Desse modo, na cotidianidade, os corpos não têm os mesmos valores. Enquanto uns são valorizados, cultuados, invejados, e até endeusados, outros podem, simplesmente, serem ocultados, negados, subjugados, esquecidos ou puramente apagados de seus valores. Mas, como exatamente é feita essa valorização ou precificação?



Crédito: wix.


Não é de hoje que se ouve falar na aceleração do tempo e, nessa pressa de vida, aqueles que já perderam a agilidade, seja pela idade ou por alguma necessidade especial, permanente ou temporária, acabam sendo sempre tratados como pessoas que estão desacelerando o caminhar dos outros. Por conseguinte, precisam ser “tiradas” do caminho, são os corpos que ocupam lugares que outros gostariam de ocupar. Exemplos existem aos montes, especialmente quando se fala de pessoas idosas. Seus corpos cansados e tornados lentos pelo transcorrer do tempo já não conseguem mais ter a agilidade de tempos idos e, por muitas vezes, são atropelados, ignorados, silenciados. Uma das grandes estudiosas das memórias dos idosos, Ecléa Bosi, fala sobre a iniquidade com os velhos: “Não se discute com o velho, não se confrontam opiniões com as dele, negando-lhe a oportunidade de desenvolver o que só se permite aos amigos: a alteridade, a contradição, o afrontamento e mesmo o conflito”.


Ao negar ao velho o direito de se expressar, de apontar seus desejos, de contrapor uma ideia, tira-se deste corpo a visibilidade do existir. Há alguns anos, no campo dos estudos historiográficos, uma expressão passou a ser muito usada: “dar voz”, ou seja, trazer a baila as histórias de pessoas que foram historicamente silenciadas, haja vista que a História contada sempre foi privilégio dos vencedores. Portanto, escreveram-nas de forma a elevar seus feitos, bem como diminuir o papel de seu opositor nos episódios pregressos.


Mas algo me incomoda nos dias atuais: quais corpos realmente são vistos. No ano de 1990, um filme do diretor Garry Marshall, estrelado por Richard Gere e Julia Roberts, uma das cenas que me chamou muita atenção foi a da personagem feminina entrando numa loja para fazer compras de roupas e sendo sumariamente distratada pelas vendedoras, pois não aparentava ter dinheiro. Aqui, quero chamar a atenção para uma frase corriqueira: nunca julgue um livro pela capa. Muito frequentemente, as pessoas são, sim, julgadas pela aparência, pela cor da pele, pela profissão, pelo local de nascimento, pela posição social, pela preferência musical, etc.


Trabalhadores da indústria de prestação de serviço, muitas vezes, são treinados a diferenciar o potencial cliente daquele que não tem dinheiro, num mundo onde a aparência, geralmente, é mais valorizada do que o poder real. Estar bem vestido é sempre um diferencial, real ou não, pois fomos ensinados a acreditar que marcas e modelos significam dinheiro e poder. Quem não usa marcas caras, quem não aparenta ter, não será tratado como pertencentes a determinados lugares. O filme acima citado é uma obra de arte, mas com certeza, ilustra muito bem situações que muitas e muitos já vivenciaram no seu dia-a-dia.


Frequentemente, pessoas que exercem profissões que exigem menor grau de instrução passam desapercebidas. Aqueles prestadores de serviço que usam uniformes e estão na base da pirâmide social são as mais invisibilizadas, ou, se preferirmos, as que são expostas às situações mais esdrúxulas possíveis. No dia 12 de fevereiro de 2018, um empresário fez um garçom lavar seus pés com champagne Veuve Clicquot. O intuito era tirar a areia, além disso, a champanhe era dele, porém, o trabalho de assear, ficou a cargo do garçom.


Episódios como este não são uma rotina. É bem verdade que, na maioria dos casos, a invisibilidade dos corpos é tamanha que muitos utilizam os serviços de uma ̸ um controlador de acesso nos condomínios, seja de casa ou de apartamentos por anos, passam pela mesma pessoa todos os dias e nunca se dá ao trabalho de lhe cumprimentar. Todavia, esse apagamento do outro acontece como um fator de construção social. O invisibilizado de agora, ali na frente, invisibiliza o outro numa grande ciclicidade de repetição e atos.


Para finalizar, quero lembrar que alguns corpos são sempre mais invisibilizados do que outros, e um dos mais apagados é o feminino. A mulher continua sendo tratada como o outro do outro. Mas ainda somos pertencentes a sociedade, nossa luta ainda está muito longe do fim.


Referências:

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velho. São Paulo: T.A. Queiroz, Editor, Ltda, 1983.

Quem é o milionário que fez garçom lavar seus pés com champanhe caro. Disponível em: https://noticias.r7.com/cidades/quem-e-o-milionario-que-fez-garcom-lavar-seus-pes-com-champanhe-caro-16022018 Acesso em: 12 out. 2022.

RODRIGUES, José Carlos. O corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.

UMA linda mulher. Direção de Garry Marshall. Los Angeles: Touchstone Pictures, 1990. 1 DVD, (119 mim.).


*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).

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