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O heroísmo dos vencidos: pintura e nacionalismo crítico em Antônio Parreiras.

Toronto, 01 de junho de 2022.

André Sena *



A questão dos vencidos nos estudos históricos sempre foi um desafio que ora assombrou, ora encorajou ou silenciou muitos historiadores. Por muito tempo, especialmente antes do que conhecemos em historiografia como o Movimento dos Annales de 1929, uma narrativa histórica que privilegiava o heroísmo dos vultos, a ótica dos supostos vencedores, a perspectiva de uma certa elite, foi o que predominou em trabalhos que se consolidaram como referências historiográficas clássicas.



Crédito da imagem: Itaú Cultural.


O termo “história dos vencedores” deriva de um conjunto de importantes reflexões do filósofo Walter Benjamin, especialmente em sua coletânea de aforismos Über den Begriff der Geschichte [Sobre o conceito de história], dedicada a compreensão da natureza da história enquanto produtora de conhecimento. Benjamin produz uma análise especialmente crítica de um fenômeno historiográfico que conhecemos como “historicismo”, termo cunhado pelo historiador alemão Friedrich Meinecke. O historicismo desenvolveu-se como uma espécie de método de pesquisa documental, ao mesmo tempo espontâneo e sistemático, onde o historiador era de alguma forma levado a produção de uma história instrumentalizada para e sobre as ações das classes dominantes no tempo e no espaço.


Quando nos deparamos com a pintura histórica de Antônio Parreiras, percebemos o quanto a arte pode potencializar, a partir de temáticas ligadas a fatos históricos (e não a feitos!) outras possibilidades de reflexão acerca do passado, complementando ou até mesmo contradizendo o "ofício do historiador”, se desejarmos tomar aqui emprestado o termo que nos legou François Furet, em “A Oficina da História”.


O pintor niteroiense, mais conhecido por sua obsessão romântica pela pintura de paisagens, algo que aprendeu ainda na juventude com seu mestre alemão Johann Georg Grimm, nos legou um conjunto de obras de pintura histórica, de especial sabor republicano e ao mesmo tempo desmistificador de uma história influenciada pelo historicismo e a serviço da concepção de uma narrativa heroica, essencialmente vencedora e patriótica.


Como afirmara certa vez Lord Acton em uma matéria chamada “Nationality” publicada na The Home and Foreign Review de 1862 “O patriotismo é na vida política aquilo que a fé é na religião.” Antônio Parreiras pintou boa parte de seus quadros históricos em um momento de afirmação de um nacionalismo construído a fórceps e de cima para baixo, no período da Primeira República no Brasil (1889-1930). Seu quadro de 1928 Jornada dos Mártires deixa clara sua adesão aos revérberos nacionalistas daqueles tempos, mas sem uma rendição incondicional a qualquer tipo de patriotismo chauvinista e intoxicante. O Brasil não estava acima de todos.


A escolha da Inconfidência Mineira como motivo central da pintura, dialogava certamente com a eleição de Tiradentes como mártir ancestral republicano, consagrado na letra do hino à Proclamação composta por Medeiros de Albuquerque, bem como na popularização de sua figura como herói nacional. Entretanto, Jornada dos Mártires apresenta a epopeia de uma inconfidência que malogrou, a firmeza de um movimento político insustentável, o heroísmo cabisbaixo dos condenados.


A cena histórica para o quadro parece ter sido cirurgicamente captada por Parreiras: os conjurados de Minas Gerais, após a delação premiada da conspiração de Vila Rica, foram presos e encaminhados para julgamento no Rio de Janeiro. O trajeto de Minas ao Rio implicava em uma pausa para descanso da guarda e dos prisioneiros na Fazenda Soledade, hoje cidade de Matias Barbosa, sertão mineiro. E justamente a saída da fazenda, posterior ao descanso, que nos retrata o pintor. E por falar em sertão, é desnecessário dizer que Antônio Parreiras não resiste à tentação de conferir especial destaque ao paisagismo do local, em detrimento dos personagens históricos, que certamente interessaram muitos mais ao prefeito de Juiz de Fora, que encomendara o quadro ao pintor, possivelmente para decorar o salão do seu gabinete.


A paisagem ostensiva que se impõe sobre os inconfidentes na cena pintada por Parreiras, poderá nos sugerir um país grande demais para revoluções. Pode ainda nos sinalizar, pela sua dimensão desértica, causticante, inacabada, exatamente o contrário disso. As utopias estariam apenas começando havendo, portanto, muito por fazer em prol da construção nacional; a derrota em uma batalha, poderia, quem sabe, não se traduzir necessariamente na perda de toda a guerra.


A capela de Nossa Senhora do Rosário, colocada em perspectiva ao fundo nos acena possivelmente com uma igreja vigilante ou metaforiza a misericórdia divina diante do destino trágico dos presos, que lhes reservaria em breve ou o degredo ou o martírio. Pode ainda lembrar o papel histórico da irmandade de Nossa Senhora dos Rosários desde o século XVII como centro de socialização e, portanto, de vivência comunitária da escravaria, de pretos-forros e até mesmo de homens brancos livres e pobres nas Minas Gerais.


No quadro de Parreiras são os vencidos que se apresentam como protagonistas. A passada dos conjurados lembra a música Va Pensiero, o canto dos cativos, composta por Giuseppe Verdi para o terceiro ato da ópera Nabucco. Curiosamente, todas as vezes em que me pego observando Jornada dos Mártires, tenho a imediata sensação de ouvir ao longe o trecho “Oh, mia patria si bela e perduta / oh, membranza si cara e fatal”. Na ópera de Verdi, assim como no quadro de Parreiras, os vencidos caminham firmes, ainda que derrotados: os primeiros em direção a liberdade; os segundos por pagarem o preço de terem lutado por ela.


As cabeças baixas daqueles que maquinaram a Inconfidência dominam a cena central do quadro. Apenas a genialidade de um pintor como Parreiras poderia retratar um episódio da história brasileira tão incensado pela república do café com leite de forma tão provocadora. Trata-se aqui da celebração do fracasso, ao mesmo tempo em que uma certa memória moral é preservada. A dramaticidade dos personagens olhando para baixo, a pé, a cavalo, cercados de guardas, em marcha forçada rumo ao distante Rio de Janeiro, destino derradeiro de sua condenação, comove o espectador ao mesmo tempo que lhe presenteia com a consciência de que lutas inglórias foram travadas no passado para que mudanças se construíssem, ainda que tardias.


O sofrimento dos conspiradores mineiros é escancarado por Parreiras na tela. Apenas um oficial se coloca a frente do grupo em direção ao Rio. No entanto, a milícia armada aparece sombreada pelo pintor em perspectiva, confirmando a condição de todos ali como detidos pela força das armas. Ainda que saibamos do que se trata, não é possível identificar os personagens. Claudio Manoel da Costa? Carlos Correia de Toledo? Francisco Antônio de Oliveira Lopes? Tomás Antônio Gonzaga? O Tiradentes? Não sabemos quem é quem. Mas todos estão ali, visíveis e ao mesmo tempo sem nome, prestes a pagar pelo crime de sedição e traição à Coroa. Parreiras nos brinda com a história dos vencidos.


O desafio que Antônio Parreiras parece ter conquistado em Jornada dos Mártires será igualmente enfrentado por historiadores no futuro. Hoje, já é não apenas louvável como academicamente estimulado o fomento a reflexões históricas que tenham como temática os excluídos, as minorias, os invisíveis, e aqueles que no passado tiveram sua voz e sua vez silenciada por uma história notoriamente conservadora e historicista. Jornada dos Mártires se soma a esse esforço de artistas, estetas, pensadores e intelectuais brasileiros; ao menos aqueles que de fato se dedicam de forma honesta a produção da arte e do conhecimento sobre o nosso país.


REFERÊNCIAS:

SILVA, Paloma (2007). «A Inconfidência Revisitada: Antônio Parreiras e a Jornada dos Mártires». Trabalho de conclusão da Especialização em História da Cultura e da Arte da Universidade Federal de Minas Gerais

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. Edição Crítica. Alameda, 2020.

CARVALHO, José Murilo de. Formação das Almas. O imaginário da república no Brasil. Companhia das Letras, 2017.

FURET, François. A Oficina da História. Ed. Gradiva, 1991.


*André Sena é historiador (UERJ).

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