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José Murilo de Carvalho: uma homenagem

Rio de Janeiro, 08 de setembro de 2023.

Luciene Carris*


O Box Digital de Humanidades, nesta edição dedicada ao cientista político e historiador José Murilo de Carvalho, falecido em 13 de agosto de 2023, prestou uma homenagem mais do que merecida. José Murilo de Carvalho, imortal da Academia Brasileira de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, dedicou sua trajetória aos estudos sobre cidadania, nação, justiça e liberdade em uma série de obras importantes. Esta minha homenagem vem em um momento oportuno, após as comemorações da Independência do Brasil em 7 de setembro.



Crédito da Imagem: Fundação Biblioteca Nacional.


Não por acaso gostaria de destacar a monumental obra em quatro volumes intitulada Guerra Literária: Panfletos da Independência (1820-1823), que teve a colaboração dos historiadores José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcelo Basile como organizadores. Esta obra notável disponibilizou ao público um total de 362 panfletos, muitos dos quais eram documentos até então desconhecidos ou pouco utilizados pelos pesquisadores. Aliás, os quatro volumes encontram-se disponíveis para o download na página oficial da Fundação Biblioteca Nacional. É uma pesquisa de folego que durou cerca de quinze anos.


Os panfletos constituíam documentos interessantes, pois eram mais acessíveis e mais baratos que os jornais, podiam ser impressos ou manuscritos, muitos eram afixados em postes, muros e casas, geralmente eram lidos em voz alta, uma vez que a maior parte da população brasileira era analfabeta, mas que acompanhava de perto as questões políticas da época, em especial, se Brasil se separava de Portugal ou se Pedro I retornava ou não. Uma das características mais marcantes desses folhetos era o seu caráter polêmico e a sua linguagem muitas vezes apaixonada e violenta, assinalado pelo “argumento de autoridade” como bem apontou José Murilo de Carvalho. O debate político no Brasil, no processo de Independência com Portugal, foi caracterizado pela agitação e pela crise que também se revelava através da escrita. Neste sentido,


Produzidos em momentos de agitação política, os panfletos foram instrumentos fundamentais para o surgimento da política pública do mundo moderno e do início do contemporâneo. Funcionaram como meios de mobilização da sociedade e possibilitaram a intervenção do indivíduo comum na construção dos destinos da coisa pública. Disseminavam notícias e informações a uma plateia mais ampla, tirando-as do domínio privado para um espaço público comum, esboçando uma “voz geral” que se transformaria, com a difusão da mentalidade e da sociabilidade das Luzes, em autêntica opinião pública (Carvalho; Bastos; Basile, 2014, p. 14-15).

A luta pela Independência do Brasil foi um processo político abrangente que contou com a participação de diversos setores da sociedade brasileira, incluindo aqueles que não faziam parte da elite da época. Além disso, esse movimento também trouxe à tona grupos populares que até então foram marginalizados e excluídos de uma historiografia oficial, como mulheres, libertos, escravizados e indígenas, até meninas como a baiana Urânia Valério, que consta ter escrito com apenas treze anos um desses panfletos, intitulado Lamentos de uma Baiana, e que foi publicado durante os conflitos na Bahia. O episódio durou dezessete meses e se encerrou com a entrada do Exército Libertador ou Pacificador no dia 02 de julho de 1823 em Salvador, o que demonstra como “O Grito de Ipiranga”, imortalizado na pintura de Pedro Américo, não foi um episódio decisivo, mas um fragmento simbólico desse processo político.


Em uma entrevista exclusiva concedida à TV Brasil em 2012, José Murilo de Carvalho fez uma comparação interessante entre os panfletos da época da Independência do Brasil e a plataforma Facebook dos dias atuais, destacando como ambos eram meios de comunicação propensos a debates acalorados com suas réplicas e tréplicas, além disso, evidenciou as diversas camadas da sociedade que se envolveram naquele processo de convulsão política. De fato, outro aspecto notável em sua trajetória foi seu compromisso com a divulgação do conhecimento junto ao público em geral. Sua presença em diversas entrevistas, como no programa Roda Vida em 2015, e a publicação de artigos em periódicos de ampla circulação demonstram seu esforço em tornar o conhecimento acessível a um público mais amplo.



Crédito da Imagem: Bazar do Tempo.


Aliás, em 2017, o imortal publicou a obra O Pecado Original da República: debates, personagens e eventos para compreender o Brasil, que reúne textos de sua autoria originalmente publicados em jornais e revistas, que têm como fio condutor a análise de como a exclusão do povo deixou uma marca indelével na vida política do nosso país.


Na Introdução, José Murilo de Carvalho, relembrou monografia Como se deve escrever a história do Brasil, de Von Martius, publicada em 1845, que recomendava aos historiadores a escreverem “sempre em linguagem simples que possa atingir o grande público, para além do círculo de especialistas” (Carvalho, 2017, p. 07). Além disso, destacou,


Há uma tradição brasileira de convocar intelectuais, aí incluídos profissionais da História e das Ciências Sociais, a se manifestarem sobre problemas nacionais na mídia impressa, nas rádios, canais de TV e nas redes sociais. Vários têm aceitado o desafio. Como consequência, o conjunto de sua produção escrita, e me limito agora aos historiadores, inclui textos estritamente acadêmicos, publicados em livros e artigos de revistas especializadas, e trabalhos mais leves, destinados a revistas de opinião e jornais. São dois tipos de trabalho que se distinguem pelo tamanho, pela linguagem, pela retórica de convencimento e pelo público-alvo (Carvalho, 2017, p. 07).

Não tive a oportunidade de ter sido a sua aluna, mas pude explorar sua vasta obra escrita, assisti suas palestras e, de maneira especial, tive a honra de entrevistá-lo em sua residência no bairro do Flamengo. Naquela ocasião, estávamos na imensa sala que funcionava como um misto de biblioteca e escritório, e seu gato nos fazia companhia. Foi uma experiência que me permitiu perceber de perto a genialidade, a ironia sutil e a cordialidade desse intelectual que certamente fará falta ao pensamento político brasileiro. A entrevista focou no livro mencionado, que estava recém-lançado na época, e foi realizada para o nosso canal no YouTube, chamado Entreconexões, dedicado à divulgação histórica e cultural. Esse projeto foi desenvolvido em parceria com o historiador Vicente Saul Moreira dos Santos e o videomaker Luis Felipe de Oliveira Mano. Aproveito a ocasião para compartilhar a primeira parte da entrevista "José Murilo de Carvalho - O Pecado Original da República".









Referências:

CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das; BASILE, Marcello Otávio. Guerra Literária: panfletos da Independência. MG: UFMG, 2014. 4 vol.

CARVALHO, José Murilo de. O Pecado Original da República: debates, personagens e eventos para compreender o Brasil. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017.

STARLING, Heloísa; PELLEGRINO, Antonia (orgs.). Independência do Brasil: as mulheres que estavam lá. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).

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