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Costumes em Comum


Guarulhos, 01 de novembro de 2023.

Luzimar Soares*


As praticas e normas se reproduzem ao longo das gerações na atmosfera lentamente diversificada dos costumes. As tradições se perpetuam em grande parte mediante a transmissão oral, com seu repertório de anedotas e narrativas exemplares. Sempre que a tradição oral é suplementada pela alfabetização crescente, os produtos impressos de maior circulação – brochuras com baladas populares, almanaques, panfletos, coletâneas de “últimas palavras” e relatos anedóticos de crimes – tendem a se sujeitar a expectativas da cultura oral, em vez de desafiá-las com novas opções.

E.P.Thompson. 1998.

A primeira vez que li o autor acima, foi sobre um capítulo do livro do qual tomo emprestado o título desse escrito, Costumes em Comum, e se transformou em um dos livros que mais quis ler no decorrer do ano de 2017; o capítulo em questão tem o título de: "A venda das esposas". Devorei o texto que me foi recomendado como parte das leituras obrigatórias em uma das disciplinas do mestrado. Tentei lê-lo de uma só vez, pois fiquei enebriada com o que lia, e uma mistura de raiva e desejo de compreender aqueles escritos tomou conta de mim.



Crédito da imagem: Amazon.


A necessidade de compreender um costume me instigou a não parar a leitura e, ao final, precisei retomar e verificar se eu realmente tinha entendido o resultado de um estudo tão longo que deu sustentáculo aos escritos do pesquisador. Destaco abaixo, a parte que mais me chamou atenção nesse capitulo:


A venda das esposas, portanto, aparece como um exemplo extremo do caso geral. A esposa é vendida como um bem, e o ritual, que a transformava numa égua ou numa vaca, era degradante e tinha a intenção de degradar. Ela ficava exposta, no que dizia respeito à sua natureza sexual, aos olhos e às brincadeiras rudes de uma multidão desconhecida. Embora fosse vendida com o seu próprio consentimento, era uma experiência profundamente humilhante, que as vezes provocava raiva nas outras mulheres, e às vezes invocava a sua simpatia: Não faz mal, Sal, coragem levante a cabeça, não desanime nunca.

Para compreender esses escritos, foi necessário que eu lesse outros estudos, pois foi impossível ler o exposto acima e não questionar com relação aos comportamentos sociais que permitem a venda de mulheres e ainda por cima em rituais tão degradantes. 218 casos foram estudados entre 1760 a 1880 e o o historiador salienta que que houve casos tanto antes quanto após esse período.


Embora seja chocante verificar essas negociações, é preciso sair do hoje e buscar as explicações no tempo vivido e, sendo assim, de acordo com o próprio Thompson esta era uma forma que os pobres da época encontravam de se divorciarem haja vista as leis inglesas serem bastante rígidas e os custos altíssimos, impossibilitando que subalternos se divorciassem. Em decorrência disso, as classes populares encontraram um caminho, ou seja, vender suas esposas.



Edward P. Thompson (1924-1993).

Crédito da imagem: Outras mídias.


Obviamente que não é possível negar o grau de misoginia e crueldade com as mulheres, a venda acontecia sempre em local público e a mulher era levada amarrada por uma corda e puxada pelo marido e, ainda que fosse com seu consentimento, ela era a vendida e exposta. Há relato de que algumas vezes ela era vendida para o amante. Seja porque ela não queria mais o casamento ou porque o marido havia decidido que queria ir embora, além de exposta, a mulher era humilhada, xingada, blasfemada, insultada, diminuída.


Essas tradições e costumes foram investigados e publicizados nos relatos do autor. O último caso que ele conseguiu levantar data de 1913, todavia como ele adotou um recorte temporal anterior a essa data, não pesquisou a fundo. O certo é que, alguns grupos de pessoas são sempre mais sacrificados do que outros, e ao olharmos a história da humanidade, as mulheres são sempre as mais excluídas.


Temos uma série de hábitos, sejam eles individuais ou coletivos, que muitas vezes tonam-se culturas que são transmitidas de geração em geração, vão se modificando ou se solidificando. O que a investigação do pesquisador mostrou foi que com o passar dos tempos, as lutas e reivindicações dos subalternizados trouxeram mudanças e a venda das esposas não foi mais necessária para que eles pudessem se divorciar, pois a análise mostrou que essa era uma forma que os pobres tinham de subverter a ordem estabelecida e decidirem suas próprias vidas. Segue mais um trecho:


Não é preciso explicar que casamentos entram em crise e que alguma forma de divórcio é uma conveniência. Nessa época, não havia divorcio possível para o povo inglês ou galês. A alternativa talvez fossem as trocas informais e as coabitações. Na prática, a ausência de formalidades tinha em geral favorecido o parceiro masculino, que – como mostram os registros das leis de assistência aos pobres e das sessões trimestrais dos tribunais – encontrava mais facilidade em abandonar a mulher e os filhos do que ela em abandoná-los. O homem podia levar consigo um oficio; uma vez escondido na cidade, a salvo dos fiscais dos pobres, ele podia se estabelecer com uma nova parceira pelo direito consuetudinário. A mulher normalmente saía de um casamento impossível ou violento para a casa dos pais ou parentes – a não ser que já tivesse encontrado um novo amante.

Enquanto sociedade, precisamos sempre estarmos atentos aos direitos sociais. Na atualidade, sabemos que em muitos países as mulheres continuam sendo subalternizadas, diminuídas e proibidas, excluídas das decisões, obrigadas a obedecerem a seus maridos e relegadas ao servir. Infelizmente, não precisamos sair do nosso país para vermos os mais diversos tipos de violência contra as mulheres, seja ela física, moral, sexual, financeira ou psicológica, a mulher tem que lutar o tempo todo.


Os hábitos de uma sociedade podem se transformar em cultura, sendo assim, é preciso sempre que vejamos os nossos hábitos e nos certifiquemos que eles não oprimem ninguém. Os subalternizados lutam todos os dias para saírem dessa condição e algumas vezes apenas a insurgência é capaz de transformar essas realidades.


É muito pesaroso perceber que muito do comportamento social do século XVII ainda perdura.


Mulheres do mundo todo, unimo-nos.



Referências:

THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das letras, 1998.



*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).



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