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  • Foto do escritorLuciene Carris

O curto circuito das topografias homoeróticas no Rio de Janeiro

Atualizado: 15 de jun. de 2023

Rio de Janeiro, 15 de junho de 2022.

Luciene Carris*



Então, estamos em junho, quando se comemora o Mês do Orgulho LGBTQIA+ ao redor do mundo. É bem verdade que a data tem uma origem para lá de lamentável. No dia 29 de junho de 1969, em um bar localizado na ilha de Manhattan, em Nova York, nos Estados Unidos, ocorreu um incidente que deixou uma marca indelével para a história. Os frequentadores do bar Stonewall Inn, considerado o único bar gay da cidade, sofreram mais uma batida policial. Sob a alegação da proibição de vendas de bebidas alcoólicas, diversas pessoas foram presas e agredidas. A partir daí, se sucederam seis dias de violências e de manifestações que eram amplamente divulgadas nos noticiários. Até então, a comunidade LGBTQIA+ que não se manifestava publicamente, se reuniu demonstrando orgulho, e se recusaram a seguir a antiquada e preconceituosa “lei e a ordem” determinada pela sociedade norte-americana.



Crédito: Wix.


Contudo, somente em 2016, o então presidente Barack Obama, dos EUA, decretou o bar como um monumento dos direitos do LGBTQIA+ do país, ao que parece se inspirou no governo da cidade de Nova York, que já havia declarado o bar como patrimônio histórico no ano anterior.


Seja como for, dando um salto para o Rio de Janeiro e relembrando antigas memórias afetivas, confesso que circulei pelo cenário noturno LGBTQIA+ por volta da década de 2000. Aliás, sempre gostei e gosto de flanar pelos diversos lugares da cidade, conhecer pessoas e lugares diferentes. Não por acaso venho me dedicando a estudar a história urbana em seus diferentes aspectos. Bom, naquela época, a comunidade que eu conhecia se autodeclarava resumidamente “GLS” (gays, lésbicas e simpatizantes). A “cena GLS” (bares, boates, quiosques etc.) carioca da zona sul se resumia a alguns ambientes para lá de divertidos.


Em Copacabana, as boates Le boy, La Girl, La Cueva, Fosfobox além do quiosque Rainbow, em frente ao Copacabana Palace. Pelas bandas de Ipanema, a boate Dama de Ferro e Galeria Café, bem como a rua Farme de Amoedo, em algum momento, se destacou com bares e festas na rua. Pela cidade, os espaços de sociabilidades se encontravam em outros bairros como Bangu e Madureira. No bairro de Botafogo, durante um período havia uma rua especial do bairro, que tempos depois passou a atrair um certo grupo de camaradas muitos hostis, e com a escalada da violência o lugar foi se esvaziando e acabou. Curiosamente, naquela década, o Rio de Janeiro se convertia como o destino ideal para o público LGBTQIA+, de acordo com a imprensa e com a intensa atividade de determinados órgãos governamentais como a Secretaria de Diversidade Sexual (existia uma, é verdade!). Em síntese, se vislumbrava o potencial do consumo, portanto, o lucro que tais turistas poderiam deixar na cidade, o tal do Pink Money. Apesar disso, ao que parece o capitalismo neoliberal não conseguiu superar a escalada moralizante dos últimos anos no país, cujo resultado é uma onda de violência de gênero, de homofobia e de transfobia crescente.


Mas foi no bairro do Centro onde tudo começou. E não por acaso. Ali surgiu a cidade, era o lugar de trabalho, de consumo, de moradia de muitos trabalhadores, e onde circulava as novidades trazidas de fora, especialmente de Paris e de Londres. O antigo Largo do Rossio, hoje Praça Tiradentes, que abriga bem ali em seu centro uma estátua equestre do imperador D. Pedro I (1798-1834), construída para celebrar o 40º aniversário da declaração da Independência do Brasil em 1862, e que perdeu a inspiração patriótica original, se converteu em um lugar de encontros de homens com propósitos românticos e sexuais. Como bem apontou o brasilianista James Green,


A localização estratégica da praça favorecia uma combinação eclética de teatros, os recentíssimos cinemas, uma sala de concertos que apresentava números musicais e espetáculos de variedades — o chamado teatro de revista —, sem mencionar os cabarés, cafés populares, além dos bares. A burguesia carioca frequentava o elegante e espaçoso Teatro São Pedro, enquanto os fregueses das classes média e operária tinham à mão uma série de distrações culturais, culinárias, libacionais e sexuais (GREEN, 2019, p. 59).


Outro ponto vibrante da cena carioca a poucos quarteirões dali era a região boêmia da Lapa com seus bares e cabarés. A “topografia homoerótica” incluía ainda a Cinelândia e o Passeio Público. Um ambiente social marcado pelo encontro de “funcionários públicos, jornalistas, profissionais da classe média, intelectuais boêmios e jovens de famílias tradicionais, amantes da aventura misturavam-se livremente com escroques e ladrões de fim de semana, apostadores, cafetões, frescos e putas” (GREEN, p. 147). Por volta da década de 60, na rua do Resende foi criado uma espécie de clube social denominado de “Turma Ok”, entre os casarios antigos do século XVIII, o seu extenso logradouro reunia desde sobrados residenciais, hospitais e bares, mas no local se realizavam animadas festas, shows e eventos sociais para homossexuais de variadas idades e origens socioeconômicas (SIQUEIRA, 2009).


Como se constata nesse breve texto, diversos foram os espaços de sociabilidades em territorialidades específicas apareceram na cidade, não convém aqui enumerá-los, se constata que em sua maioria foram alvos de algum grau de perseguição. Vale a pena trazer uma reflexão que compreenda o entendimento de que muitos direitos da comunidade LGBTQIA+ não foram conquistados, apesar de muitas mudanças nas últimas décadas. A esse respeito, sinalizo o direito à cidade, relembrando o clássico estudo de Henri Lefebre, que destacou que é um direito que: “se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade”(LEFEBVRE, 2001). Em que pese o preconceito, os espaços de sociabilidades homoafetivas sempre existiram e continuaram surgindo pelos pontos mais variados da cidade com as suas pecualiaridades, mas claro, que ainda teremos o tradicional carnaval.


Referências:

ABREU, Maurício de Almeida. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 1988.

GREEN, James. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unifesp, 2019.

LEFEBVRE, Henri. O Direito a Cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia a atualidade. Rio de Janeiro. Record: 2000.

SIQUEIRA, Mônica Soares. Arrasando Horrores! Uma etnografia das memórias, formas de sociabilidade e itinerários urbanos de travestis das antigas. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).

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