Guarulhos, 01 de setembro de 2022.
Luzimar Soares*
Falar sobre esse tema, apesar de ser algo importante e muito interessante na nossa História enquanto sociedade, nunca foi algo que me atraiu. Por alguma razão que na minha infância não conseguia entender, o desfile de sete de setembro sempre me causou certo descontentamento. Parecia um lugar elitista onde eu não me encaixava. É importante salientar: na primeira vez que vi um desfile, a escola onde eu estudava ficou de fora do evento, (ou, pelo menos, muitos alunos ficaram). Isso foi nos idos de 1982. Os ensaios para o grande dia uniam algumas escolas municipais e, durante o transcurso dos dias, decidiram por deixar parte dos estudantes como espectadores para diminuírem o tempo de desfile. Eu fiquei de fora.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
Ao assistir, se não me falha a memória, vi algumas pessoas com bolhas nos pés e pensei: quanto sacrifício para vivenciar algo que não entendia direito. Acho interessante contextualizar geograficamente: sou do interior do estado do Ceará e, nesse ano em específico, estava estudando em uma cidade chamada Acopiara. Cidade pequena e muito quente, setembro é um mês de temperaturas elevadas. Desfilar nas ruas de paralelepípedos, por um tempo de aproximadamente duas horas, pode causar muitos estragos nos pés.
Bem, o tempo passou, e eu acabei nunca fazendo parte dos desfiles cívicos, mas me interessei por História. As datas comemorativas passaram a exercer sobre mim um misto de desconfiança e curiosidade. Algumas questões frequentemente me incomodavam, como, por exemplo, a obrigatoriedade de saber todos os nomes da Princesa Isabel, de Dom Pedro, de jurar a bandeira (aliás, cantar o Hino da Bandeira em geral, foi umas das coisas mais sem sentido para mim). Sempre o fiz, todavia, com muitas inquietações a me guiar.
Estudar História e buscar entender as lutas escondidas nessas datas passou a ser um dos estudos mais interessantes da minha carreira. Hoje, às vésperas de mais uma comemoração, a inquietude aumentou, especialmente com a chegada do coração de Dom Pedro I para as celebrações do bicentenário da Independência. De imediato, busquei entender o que faria um órgão ser trazido do além-mar para comemorar a Independência. Visitei o site oficial do Governo Federal, bem como li muitos artigos escritos por historiadores e cientistas, e não consegui encontrar razoabilidade na presença de tal órgão. Mas, o que mais me chamou a atenção durante as pesquisas foi uma das regras para quem quiser visitar o Itamaraty e conhecer o coração do imperador: “É vedado o porte de armas e de outros utensílios”.
Depois da redemocratização do país (nos anos 1980), vivemos anos de campanhas de desarmamentos, fizemos plebiscitos, entregamos as armas, diminuímos os acidentes domésticos por armas de fogo deixadas à mão, mas ultimamente, não raro vemos chamadas de notícias de pessoas mortas acidentalmente por disparos involuntários; ou o que é pior, por tiros disparados por pessoas (policiais) que deveriam proteger a população. Todavia, nos últimos anos, cresceu o número de clubes de tiros, diminuiu o número de bibliotecas. Será por isso a advertência da proibição da entrada com armas?
Acredito piamente que, para além da celebração, é preciso compreender as lutas das pessoas para que esse momento acontecesse. A Independência, assim como a abolição da escravatura, não foram atos de um nobre que “libertou” o país. A efeméride de 1822, o grito da Independência, a mudança nos rumos do país não foram obras de um homem só. Por conseguinte, é difícil compreender as celebrações quando essas se referem apenas aos “grandes homens”. Em visita ao site oficial das festividades, tudo é voltado, apenas, para os denominados vencedores.
O que é o Brasil de 2022? Vivemos sob o julgo de uma administração federal que não se refuta a ventilar inverdades nas mídias, sejam elas redes de televisão, jornais, ou até as sociais. Aliás, essas últimas são as preferidas para a disseminação da desinformação. Esclarecer nossa História e mostrar que somos fruto de muitas lutas, de silenciamentos, de escravização de populações, de dizimação dos povos autóctones, de anos de exploração, e que nossa Independência foi um fato que não aconteceu isoladamente, que estamos na América e que precisamos falar de independências (no plural mesmo), parece-me mais urgente do que nunca.
Estamos, mais uma vez, voltando-nos para os poderosos, para aqueles que querem contar a História sem se importar com todos os sujeitos sociais que compõem a vida no país. As universidades e entidades de pesquisa estão a cada dia buscando formas de elucidar fatos históricos que ficaram encobertos por quem se sente dono do poder e tenta silenciar. Ao mostrar que nos silenciam com armas, insurgimo-nos com livros. As pesquisas têm mostrado a importância da sociedade civil na construção da nossa História. Os “grandes feitos” são, na verdade, feitos por cada brasileiro que resiste às adversidades e segue na cotidianidade construindo o país, ainda que solitariamente.
De acordo com notícias veiculadas nas mídias, quem aconselhou o presidente do Brasil a trazer o coração de Dom Pedro I foi a mesma médica que o aconselhou ao uso de uma medicação sem nenhuma comprovação científica para a cura da Covid – 19, ou seja, alguém de fora da diplomacia, mas com influência sobre o mandatário. Teve a burlesca ideia, e nós estamos pagando para um órgão ser recebido com honrarias de chefe de estado, para além da bizarrice de expor um coração conservado em formol para comemorar um dia histórico para o país.
Ainda que eu tente ser compreensiva, sempre me restam muitos questionamentos: independência para quem? Minha adolescência foi vivida sob o jugo de ditadores. Hoje, vejo cada dia mais as liberdades cerceadas. Conquistamos vários espaços na primeira década desse século, na verdade nos primeiros 15 anos, mas nos últimos 07, temos perdido dia após dia tantas liberdades e tantos direitos, que o coração de Dom Pedro I mostra a bizarrice de um poder voltado para a manutenção de privilégios de poucos em detrimento das necessidades de muitos.
Os corações daqueles que lutam por liberdade e por direitos não se sentem independentes. Somos oprimidos por uma política voltada para poderosos, em que defender golpe de estado é feito sem o menor constrangimento, e, pior, sem a menor preocupação! Nossas instituições são atacadas e usadas em benefício, apenas, dos que apoiam essa necropolítica.
Referências: https://www.gov.br/pt-br/campanhas/bicentenario.
Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).
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