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  • Foto do escritorCarlos Eduardo Pinto de Pinto

O cinema homenageia o cinema em 2022

Rio de Janeiro, 17 de março de 2023

Carlos Eduardo Pinto de Pinto*


Em 2022, assisti a quatro filmes que têm o cinema como tema: Não, não olhe (Jordan Peele), Babilônia (Damien Chazelle), Império da luz (Sam Mendes) e Os Fabelmans (Steven Spielberg), sendo que os três últimos concorreram ao Oscar em algumas categorias – e Não, não olhe só não concorreu porque a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, com certa frequência, menospreza filmes genais. Decidi escrever esse texto quando intuí que tal recorrência de filmes sobre o cinema talvez possa significar algo sobre o estágio atual desse modo de produzir e consumir imagens em movimento.

Por certo, esse gênero de homenagens não é uma novidade – Cantando na chuva (1952), A noite americana (1973), O último magnata (1976), Bom dia, Babilônia (1987) e Cinema Paradiso (1988) são alguns exemplos de películas que já voltaram as lentes para o passado e deram uma espiadinha na história dessa invenção de quase 130 anos. Não foi diferente quando o cinema completou um século, com incontáveis documentários e antologias de curtas-metragens que louvaram a sétima arte. Portanto, o que me chamou a atenção não foi a existência desses filmes, mas a coincidência de todos terem estreado no mesmo ano, sendo que nem se trata de uma data comemorativa, como foi o centenário. Claro que a crise das salas de exibição, iniciada com o sucesso dos serviços de streaming e agravada por dois anos de pandemia, logo apareceu no meu horizonte como possível explicação para essa onda de revisões mais ou menos afetuosas. Mas, antes de seguir com a especulação, vamos aos filmes!


Resultado do experimento fotográfico que Eadweard Muybridge realizou em 1878, a imagem do jockey negro é central na trama de Não, não olhe (Jordan Peele)


Não, não olhe é uma ficção científica com tudo que se pode esperar – naves, alienígenas, fenômenos inexplicáveis, medo, apreensão. Poderia ser apenas mais um filme “de aventura” no catálogo de alguma plataforma de streaming, se não tivesse a assinatura de Jordan Peele, que já demonstrou sua habilidade em realizar filmes extremamente sofisticados. O roteiro tem muitas camadas e uma delas é justamente uma espécie de comentário de pé de página sobre a história do cinema, desde antes de sua invenção, quando em 1878 Eadweard Muybridge criou um sistema de máquinas fotográficas capaz de registrar o movimento das patas de um cavalo, base para as primeiras câmeras filmadoras. Por motivos que não cabem no âmbito deste texto, a imagem em movimento resultante desse experimento aparece já na abertura do filme, chamando a atenção para o fato de que, sobre o animal, estava um jockey negro, cujo nome não ficou registrado pela história. A partir deste binômio (jockey negro + cavalo), Peele constrói sua reflexão sobre a presença/ausência de pessoas negras na história do cinema, bem como sobre a utilização de animais em cena. Aliás, o próprio cinema é comparado a um animal – fascinante quando domado e submetido às regras do espetáculo, mas extremamente perigoso se fugir do controle. Tal dualidade se completa no fim, já que uma câmera ou algo que se assemelha a uma – sim, estou me esforçando para não dar spoilers –, se revela a principal ameaça a sobrevoar os personagens, mas é também uma câmera que possibilita a vitória sobre tal adversário. Enfim, Peele parece defender que, para enfrentar o cinema, somente o própria o cinema.


Uma das muitas sequências de bastidores de filmagem em Babilônia (Damien Chazelle), com destaque para o fato de ser uma mulher dirigindo.


Babilônia conta a saga de um ator e uma atriz nos primórdios do cinema hollywoodiano, mais especificamente no fim dos anos 1920, no limiar da passagem para o cinema falado. Damien Chazelle constrói sequências de festas apoteóticas com muito sexo, drogas e jazz, que dão conta de produzir um retrato dos bastidores hedonistas e ultraviolentos da Era de Ouro da indústria cinematográfica estadunidense; e de explicar o cinema de espetáculo ele mesmo, já que os malabarismos de câmera e o transbordamento das ações fazem referência ao impacto causado pelas películas naquele momento. Ainda, acompanha as tomadas de alguns filmes – dois deles, dirigidos por uma mulher –, explorando o fascínio e o terror exercido pela chegada do som. Contudo, é na sua sequência final que a homenagem ao cinema acontece de modo mais explícito: um personagem, que estivera inserido na indústria nos anos 1920, fica muito tempo afastado de tudo até que decide entrar novamente em uma sala de cinema nos anos 1950. Quando o filme se inicia, ele é acometido por uma emoção extrema, representada não apenas pelas expressões do ator, mas por uma edição que une trechos de diversos filmes mais ou menos conhecidos, como se ele estivesse, simbolicamente, assistindo à própria história do cinema. Tal recurso nos permite entender, junto com o personagem, que, a despeito da agitação e violência dos bastidores – que ele havia vivenciado –, o momento exato em que as imagens aparecem sobre a tela de uma sala escura se mostra sempre sublime.


A protagonista totalmente entregue ao poder de uma projeção em Império da luz (Sam Mrendes)


Algo semelhante é experimentado pela protagonista de Império da luz, uma atendente de uma sala de cinema que havia sido luxuosa nos anos 1930, mas estava adaptada para o fim dos anos 1970, os tempos bem menos glamurosos em que se passa a história do filme. Embora a personagem esteja extremamente conectada ao seu local de trabalho, a ponto de viver ali o fim de um relacionamento amoroso problemático e o início de outro, mais promissor, e de lidar com seu próprio sofrimento psíquico – ela nunca assiste aos filmes exibidos. No fim, instigada por seu novo namorado, se dá ao luxo de pedir ao colega projecionista uma exibição particular de Muito além do jardim (Hal Ashby, 1979). Ainda que o enredo da película a que ela assiste estabeleça um diálogo com sua trajetória, o mais importante para a personagem parece ser o prazer de se sentar em uma sala escura e acompanhar o facho de luz que sai da cabine de projeção e atravessa o alto da sala até a tela – isso depois de uma sequência em que compreendemos, por meio de outro personagem, a complexidade do funcionamento dos enormes projetores. Esse desfecho é o primeiro momento em que o título, Império da luz, faz sentido e se revela uma homenagem de Sam Mendes à sétima arte.


O protagonista e sua mãe, fascinados pela magia da projeção em Os Fabelmans (Steven Spielberg)


Por fim, em Os Fabelmans, o roteiro semiautobiográfico de Steven Spielberg revisita sua relação com o cinema, desde a primeira câmera até a decisão de se profissionalizar. De partida, a história apresenta o estupor da criança e o fascínio do adolescente pelos truques possibilitados pelo manejo dos aparelhos ópticos, dos atores e da própria película. Em seguida, diversas situações demonstram como a imagem em movimento é capaz de produzir e/ou mediar emoções. Por exemplo, a paixão de mãe por um amigo da família é registrada não intencionalmente pela câmera e acaba revelada durante o uso da máquina de edição; também por meio do “corta e cola” da montagem o jovem protagonista constrói a “vingança” contra os desafetos do colégio. Por fim, já decidido a se profissionalizar, o rapaz recebe uma lição enxuta, mas precisa, de John Ford sobre onde posicionar a câmera – aquele ajuste de meio milímetro que faz um diretor sair da zona de mediocridade. Em todos esses momentos, enquanto acompanhamos o amadurecimento do diretor-personagem, também nos deparamos com pessoas hipnotizadas pelas imagens, sorrindo, chorando ou se enfurecendo com seu conteúdo.


Esse fascínio diante das imagens projetadas é um ponto comum aos quatro filmes. Se em Não, não olhe isso se dá de modo mais crítico, nos outros há sempre uma ou mais sequências que se dedicam a explorar o embasbacamento dos personagens diante das telas. E parece ser isso, exatamente, o que tais obras desejam louvar – esse modo específico de produzir e assistir a filmes. Afinal, não é o audiovisual que está em crise na atualidade, como o sucesso das plataformas de streaming atestam. A dúvida maior parece ser se as pessoas ainda se sentirão motivadas a sair de casa para se divertirem em uma sala escura ao longo do século XXI. Esse tipo de crise não é nova e atingiu o cinema diversas vezes – com o advento da televisão, do videocassete e do DVD, por exemplo. E em todas essas ocasiões, ele foi capaz de se reinventar e seguir. E agora? Será que os quatro filmes comentados aqui vão entrar para a história como sintomas de uma crise superada ou como discursos emocionados à beira do túmulo?


* Carlos Eduardo Pinto de Pinto é historiador e professor de História (UERJ)

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