Rio de Janeiro, 15 de abril de 2022.
Luciene Carris*.
Não é uma novidade o fascínio do brasileiro pelo futebol, mas a junção deste esporte com o automóvel ganhou aficionados na década de 1970 e até algumas competições foram organizadas. Apesar dos acidentes corriqueiros e das inúmeras críticas sobre a violência envolvida no jogo, o autobol virou febre no Rio de Janeiro. Diversas são as matérias publicadas nos jornais sobre o efêmero “esporte”, que surgiu no Reino Unido logo depois da Segunda Guerra Mundial. Tal era a repercussão que o periódico Correio da Manhã anunciou em 1972 que, o futebol de automóveis poderia “transformar-se numa nova coqueluche do pessoal motorizado do Rio”.
Em 1970, o médico traumatologista Mário Marques Tourinho idealizou um futebol jogado por cavalos, na cidade de Taubaté, em São Paulo. A ideia não foi adiante, pois os cavalos recusavam o comando dos jogadores. Tourinho não se abateu. Como presidente da Associação de Volantes de Competição decidiu substituir os animais por automóveis. Então, a primeira exibição ocorreu na Ilha do Governador, no intervalo do jogo entre Flamengo e Portuguesa. Ao que indica, contou ainda com a participação de algumas celebridades de acordo com o periódico Intervalo, como os atores de novelas de sucesso da época como Marcos Sesso, Antônio Andrade e até Walter Lacert, que era diretor de um programa da TV Globo.
Crédito: TV Horto.
Algumas exibições foram realizadas na Avenida Atlântica em 1971 de acordo com o periódico Cruzeiro. Porém, as condições não eram ideais, ao que parece o Dr. Tourinho arcava com as despesas do esporte, que era bem oneroso. Os participantes utilizavam seus próprios carros nos jogos, o que reforça que não era um esporte acessível ao resto da população.
Seja como for, com a criação da Associação Carioca de Futebol de Automóveis, as equipes do América, Fluminense, Vasco, Flamengo foram formalizadas. Assim, tão logo foram estabelecidas as regras do jogo e a organização dos primeiros jogos, que eram realizados quinzenalmente. O primeiro campeonato de autobol ocorreu, em 1973, nos campos do Colégio Santo Inácio e no Fluminense. O de 1974 foi realizado no Colégio Santo Inácio, Country Club da Tijuca e no Horto, Jardim Botânico, e a final daquele ano foi decidida no Fluminense. No campo do Clube América, que se localizava na rua Barão de São Francisco, em Vila Isabel, foram realizadas alguns dos importantes jogos dos campeonatos. O campo não mais existe, e em seu lugar foi erguido um shopping. Conforme a popularidade crescia, o esporte foi alvo da atenção da imprensa internacional, as redes de televisão internacionais CBS e BBC filmaram até algumas partidas. Além disso, reportagens especiais foram publicadas nos periódicos Times e Playboy.
As regras não diferiam do já conhecido futebol, como conduzir uma bola ao gol do campo do adversário. O tempo total era de 70 minutos, divididos em duas partidas de 35 minutos e um intervalo de 20 minutos com juiz e bandeirinhas. A bola de couro de búfalo era uma atração à parte. Possuía 1.20 cm de tamanho e pesava cerca de 12 quilos. Carros velhos, devidamente modificados, como Renaults, Gordinis, Dauphines e Volskwagens 1600, apelidado de Zé do Caixão, ao final de cada jogo estavam praticamente destruídos e seguiam diretamente para o ferro-velho.
Entre as principais regras, salientam-se: O carro não pode usar a marcha à ré na disputa da bola; o carro-goleiro não pode ficar atravessado debaixo do travessão; não podem ficar dois carros na linha do gol; é proibido dar trombada de lado sem que seja na disputa de uma bola. Com três faltas cometidas, o carro sofre a punição da expulsão por 10 minutos (O Cruzeiro, 1974, ed. 0037).
Em sua maioria, os jogadores eram médicos, engenheiros e corretores da bolsa de valores. Havia uma oficina própria para reparos dos carros no bairro do Grajaú, e o próprio Tourinho atuava com médico nas partidas. Apesar das hospitalizações, dos choques, dos capotamentos e dos incêndios, a popularidade crescia, assim como a venda de ingressos para assistir o violento esporte.
Crédito: Diário de Notícias, 1974.
Não por acaso, os padres do Colégio Santo Inácio passaram a rejeitar a cessão do campo para os jogos, que foram transferidos para o campo de futebol dos trabalhadores do Horto Florestal, no extinto Clube Caxinguelê. Não era uma novidade que o esporte era marcadamente masculino, e a participação feminina se restringia à plateia como bem demonstra a passagem a seguir extraída do periódico O Cruzeiro, que acentuou a sexualização como marketing para atrair o público:
Vai, portanto, o autobol de vento em popa e, para os que também gostam de paquerar, diga-se de passagem, que, no meio dos espectadores do último jogo, realizado no Campo do Horto Florestal, notava-se a presença de um número expressivo de lindas garotas, algumas delas em trajo de banho, o que dá um colorido avançado e diferente ao público do novo esporte nacional (O Cruzeiro, 1974, ed. 0037).
Mas para a tristeza de muitos fãs, com a crise do petróleo de 1976, o governo federal encerrou a trajetória do autobol no Brasil. O impacto se estendeu às outras modalidades que dependiam da gasolina como automobilismo, motociclismo, rali, motocross e motonáutica. Somava-se a isso a dificuldade de encontrar campos para os jogos e patrocinadores. Apesar da efemeridade, as memórias sobre o autobol ainda reverberam nas lembranças de antigos moradores do Horto Florestal, no bairro do Jardim Botânico.
Crédito: Jornal do Commercio, 1974.
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
Referências:
“Expressas”. Correio da Manhã, 22 de junho de 1972, ed. 24293, p. 6. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/089842_08/31417 Acesso em: 14 abr. 2022.
“Proibição de corridas leva Nacache a falar com Ney Braga. Pistas devem ter espetáculo”. O Fluminense, 28 de julho de 1976, ed. 22370. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/100439_11/37695 Acesso em: 14 de abr. 2022.
"Apolinho na jogada". Diário de Notícias, Esporte, 11/12 de agosto de 1974. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/093718_05/26594 Acesso em: 14 de abr. 2022.
“O autobol começa a formar seus ídolos”. O Cruzeiro, 11 de setembro de 1974, ed. 0037.
Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/003581/193690 Acesso em: 14 abr. 2022.
“Notinhas”, Jornal do Commercio, 09 de agosto de 1974, ed. 00253. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/364568_16/30480 Acesso em: 14 abr. 2022.
“Galãs fazem gol de calhambeque”. Intervalo, 26 de setembro de 1970, ed. 403. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/109835/26005 Acesso em: 14 abr. 2022.
“Autobol: o jogo violento que se tornou uma febre durante os anos 1970”. O Globo, 15 de outubro de 2021. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/autobol-brincadeira-violenta-que-se-tornou-uma-febre-no-rio-nos-anos-1970.html Acesso em: 14 de abr. 2022.
CARDOSO, Luciene P. C. Histórias do Jardim Botânico: um recanto proletário na zona sul carioca (1884-1962). Rio de Janeiro: Telha, 2021.
DUARTE, Orlando. História dos esportes. São Paulo: Senac, 2019.
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