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Medicina, saúde e doença

Atualizado: 11 de out. de 2022

Henrique Eisenberg*

Rio de Janeiro, 15 de março de 2022.


Vivemos num mundo de símbolos. Mesmo objetos concretos, como nosso corpo, estão sujeitos a simbologias diversas. Certos conceitos, como o de saúde, doença, sofrimento, vida e morte estão carregados de interpretações simbólicas que, naturalmente, evoluem com a época histórica e fazem com que possam os analisar em retrospecto como chegamos ao que hoje tomamos como “natural”.



Crédito: Wix.

O palco onde atua a medicina não começa no consultório médico. Começa bem antes. A idealização de saúde tem como contraponto o que a criança percebe quando alguém diz que ela “está dodói”. Ela caiu, se queimou, sente dor, ou se cortou, ou apareceu algo na pele, por exemplo. Algo fugiu daquilo que faz nosso corpo ser invisível e esquecido. Algo mudou.

A idealização do corpo são traz consigo inúmeras definições e concepções. As definições de saúde e doença são muito complexas e há diversos pontos de vista filosóficos e científicos tentando conduzir as explicações.

A definição mais usual é a não-definição de saúde, uma definição negativa. “Estamos saudáveis quandonão temos doença”. Fica aberta a definição de doença, já que apesar de instintivamente sabermos o que ela é, também sabemos quão traiçoeira é uma doença invisível, não detectada, que pode ser grave a ponto de levar a um desfecho terrível ao transparecer externamente de algum modo.

A medicina em seus primórdios e, para muitos, mesmo hoje confunde-se com magia. A crença de que maus espíritos (ou maus fluidos) assumam o controle do corpo, tanto em sua consistência física quanto mental, pode ser traduzida pelas orações, exorcismos, pensamentos positivos, ou simples bênçãos que são lugar comum em nossa sociedade. No caso de orações, feitas por qualquer um em sua própria casa, mesmo à distância do doente, acaba tornando o agente das orações um tipo de mago onde o controle dos acontecimentos pode ser influenciado por suas atitudes, seja através de uma intervenção divina (que o ouve e aceita suas súplicas), seja através das mãos de um médico e/ou outro profissional da saúde. Chama-se a isso o poder da oração. Na falta desse poder, para quê orar? Poder-se-ia dizer que se trata de uma demonstração depreocupação e atenção, mas isso seria ver quem ora como egoísta. Não. Quem ora acredita que possa mesmo interferir nos acontecimentos. A própria noção de “cura”, em nosso meio ocidental e cristão, tem um aspecto religioso de algo definitivo, milagroso, incontestável. E quem pensa em cura pensa em retornar ao estágio inicial anterior ao advento da doença. Um apagamento do mal. No entanto, eventuais sequelas que podem perdurar por toda a vida não entram muito nessa definição, cujos efeitos são mais agudos do que crônicos.

Qual o maior medo de quem está doente? O sofrimento, a dor extrema e a morte. A nossa condição de seres sencientes e conscientes nos traz essa angústia. Não por acaso ao nos imaginarmos em algum tipo de julgamento após a morte por algum juiz daquilo que fizemos aqui em nossas vidas terrenas, a imagem que temos é de um ser pleno, colocado à frente de algum tipo de tribunal, não de alguém doente, até porque o corpo é que morreu, não o que traduz a vida da pessoa: sua alma. Ela, no entanto, é representada como um corpo são e íntegro! Interessante, já que essa separação entre corpo e alma acaba de um certo modo se reintegrando após a morte. A desvalorização do corpo (aqui incluindo o elemento mental) em termos metafísicos se opõe aos cuidados que temos com ele em nossas vidas, depositando nossa confiança em alguém que vai tratá-lo bem: o médico (e sua equipe).

Desde o início da jornada humana, e lá se vão centenas de milhares de anos, a administração de algo externo ao corpo que pudesse influenciá-lo, seja ervas puras ou atravésde chás e poções, seja por elementos da natureza (partes de animais, por exemplo) tinha o poder de ter algum tipo de efeito que modificasse e retificasse o caminho anormal que foi tomado, seja através de suores, de vômitos, de purgantes, em suma, de algo que fizesse o corpo expulsar o mal.

Com o tempo as observações foram ficando mais questionadoras e faziam a correlação entre causas e efeitos dos mais diversos tipos. Há poucos séculos vieram instrumentos que basicamente aguçavam e ampliavam nossos sentidos. Enquanto isso, as ferramentas utilizadas em cirurgias foram se aprimorando. As ideias sobre assepsia e anestesia já são bem mais recentes.

Hoje, mais do que nunca, a medicina é uma atividade que se baseia na ciência. Sua filosofia aceita uma realidade externa ao corpo que pode ser apontada, estudada e testada. Não basta ter opinião sobre algum assunto, é preciso que tudo (sempre que possível) seja submetido a testes, com grupo controle, estudo estatístico bem desenhado e revisado por pares que sejam referência no tema em pauta. O impacto de estudos bem feitos não pode ser subestimado. Um exemplo: no início do século XIX eram importadas para Paris cerca de 40.000.000 de sanguessugas anualmente. Fazendo uma análise bem feita, Pierre Charles A. Louis mostrou sua ineficácia em 1838. Em poucos anos o número de sanguessugas importadas caiu a poucos milhares.

A partir de meados do século XIX um tipo de revolução epistemológica atingiu a medicina e suas chamadas “ciências básicas” (fisiologia, farmacologia, bioquímica, etc): a percepção de que a experimentação era o caminho para conhecimentos mais precisos, visando a correlação entre as doenças e processos biológicos com a física e a química. Hoje, os compêndios listam milhares e milhares de doenças, cada uma com suas características. Às vezes o diagnóstico diferencial é feito dificilmente. Em último caso, dependendo das circunstâncias, faz-se o chamado “teste terapêutico”, principalmente em possibilidades em que há risco iminente de vida ou de sequelas importantes, sempre baseados em princípios éticos bem discutidos.

Voltando aos símbolos, o médico hoje é visto com um jaleco circundado por aparelhos ou pelo menos com um computador sobre a mesa. Subjacente a ele a aos aparelhos aparecem dois conceitos fundamentais à sua prática: a vida e a morte. Ambas são de difícil definição e possuem momentos em que o dilema vem à tona, podendo mesmo surgir a pergunta: “este ser à minha frente está vivo ou morto?”. A transição entre os estados (“status”) de vivo e morto não permite um transiente, uma área de indefinição, um decorrer de um processo? Sim, claro. Historicamente um ser vivo foi definido como aquele que tem funções que o mantêm vivo e se reproduzindo (um ambiente interior estável no organismo, a necessidade de introduzir substâncias que o mantenham, mecanismos de defesa internafrente a agressões, sistemas de preservação da espécie, etc), mas cada vez mais essa linha de raciocínio pode ser mantida artificialmente por máquinas, medicamentos e procedimentos.

Onde vamos parar? Será possível evitarmos a morte? E o envelhecimento? Será bom termos vida em um corpo encarquilhado com, digamos, 250 anos de vida? Ou será que daqui a um tempo um idoso com 250 será como hoje alguém com 40 anos? A resposta que mais necessitamos: e o cérebro? Poderemos aceitar o retardo do decaimento natural do corpo se o cérebro não acompanhá-lo? Quem sou eu? Meu corpo ou meu cérebro? Ou ambos? Algum é mais importante que o outro?


Muitas perguntas existem. Algumas respostas já podem ser vistas nos dias de hoje. Há poucos séculos as pessoas viviam em média 25-30 anos. Atualmente já vivemos 3 vezes mais. O desenvolvimento médico-biológico não cessa. Aqui entra, de modo premente, nossas concepções de vida digna e saudável, não apenas do corpo e mente, mas incluindo a vida social.


O que queremos é uma vida saudável, sem intercorrências, mas como a medicina está no mundo, estas intercorrências não são de modo algum apenas vinculadas ao item “saúde”. Que saibamos conduzir todos esses avanços de modo harmonioso para que, além de termos muita saúde, também possamos ser felizes.


*Henrique Eisenberg é médico (UFRJ), mestre em biofísica (UFRJ), filósofo (PUC-RIO), poeta bissexto e tocou flauta transversa em grupo de jazz até há dois anos.


Referências:


ALLAMEL-RAFFIN, Catherine; LEPLÈGE, Alain; MARTIRE JUNIOR, Lybio. História da Medicina. São Paulo: Ideias e Letras, 2011.

HELMAN, Cecil. G. Cultura, saúde e doença. São Paulo: Artmed, 2009.

Internet Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: https://iep.utm.edu/ Acesso em 14 mar. 2022.

LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Rio de Janeiro: Vozes, 2016.

STEGENGA, Jacob. Care and Cure. Chicago: University of Chicago Press, 2018

Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: https://plato.stanford.edu/ Acesso em 14 mar. 2022.



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