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  • Foto do escritorCarlos Eduardo Pinto de Pinto

Bestializados ou bilontras? A propósito de um capítulo de José Murilo de Carvalho


Rio de Janeiro, 1 de setembro de 2023

Carlos Eduardo Pinto de Pinto*


José Murilo de Carvalho faleceu em 13 de agosto de 2023. Cientista político e historiador, sua obra tem enorme impacto na produção historiográfica sobre o Império, a República e a cidadania. Convocado a homenagear sua obra neste dossiê temático do Box Digital de Humanidades, escolhi o livro “Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”, parte de minha bibliografia nos cursos de história do Brasil Republicano, ainda que com ressalvas, como indico ao longo do texto. Publicada em 1987, a obra logo se tornou um clássico. Ao partir de uma afirmação de Aristides Lobo a respeito da apatia do povo diante da Proclamação da República, à qual teria assistido “bestializado”, o autor acata a impressão do propagandista republicano e passa a refletir a respeito do que teria levado as camadas populares a esse comportamento:


Os acontecimentos políticos eram representações em que o povo comum aparecia como espectador ou, no máximo, como figurante. Ele se relacionava com o governo seja pela indiferença aos mecanismos oficiais de participação, seja pelo pragmatismo na busca de empregos e favores, seja, enfim, pela reação violenta quando se julgava atingido em direitos e valores por ele considerados extravasantes da competência do poder. Em qualquer desses casos, uma visão entre cínica e irônica do poder, a ausência de qualquer sentimento de lealdade, o outro lado da moeda da inexistência de direitos. (Carvalho, 2009, p.163).


Capa de Ettore Bottini para a edição de Os bestializados pela Companhia das Letras.


Atualmente, tal interpretação convive com novas leituras historiográficas, que valorizam modos diversos de agência popular e lidam com fontes que dão conta da adesão ao ideal republicano, associado, no imaginário, com as ideias de modernidade. Essas constatações entram em choque com o termo “bestializado”, agora posto em perspectiva e tomado como resultado de uma abordagem impressionista de Aristides Lobo, que não poderia ser generalizada. É o que defende Maria Tereza Chaves de Mello, quando afirma: “Indiferença e conformidade são reações que falam da penetração da nova cultura, na qual inscrito estava o regime republicano como uma necessidade histórica. Por isso, a população da Corte não reage à Proclamação. Ela consente” (Mello, 2009, p. 31).


Ainda que concorde com a leitura da autora – o que, portanto, me afasta da tese defendida por José Murilo de Carvalho – meu interesse neste texto é matizar a importância do termo “bestializado” no livro, buscando enfatizar outra leitura proposta pelo autor no capítulo “Bestializados ou bilontras?”, e que acabou ficando de fora da vulgarização de sua obra. Enquanto a leitura apressada contribui para reforçar que o povo teria assistido bestializado porque não compreendeu o que acontecia (a proclamação) e porque não foi convocado a participar da implantação do novo regime, José Murilo, este capítulo, conclui que, aquilo que a princípio parecia susto e ignorância, era descrença e cinismo:


O povo sabia que o formal não era sério. Não havia caminhos de participação, a República não era para valer. Nessa perspectiva, o bestializado era quem levasse a política a sério, era o que se prestasse à manipulação. Num sentido talvez ainda mais profundo que o dos anarquistas, a política era tribofe. Quem apenas assistia, como fazia o povo do Rio por ocasião das grandes transformações realizadas à sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era bilontra. (Carvalho, 2009, p. 160)

Ao afirmar que o povo, diante da proclamação, estava longe de ser bestializado, me parece que José Murilo admite que seu livro deveria ter sido batizado como “Os bilontras” – o que certamente não teria o mesmo impacto, por ser uma palavra menos facilmente decifrável quase cem anos depois dos eventos abordados. Os termos “tribofe” e “bilontra” eram correntes no início do século XX para designar um comportamento marcado pela informalidade e pelo ceticismo: “[o] bilontra é o espertalhão, o velhaco, o gozador; é o tribofeiro” (Carvalho, 2009, p. 158). Ainda que não modifique radicalmente a tese do livro, esse detalhe insere, ao menos, um matiz que a distingue do modo como acabou por ser popularizada.


Parece ainda mais interessante a associação que o autor faz entre o comportamento popular e a cultura urbana do Rio de Janeiro, a Corte Imperial que em breve se tornaria capital da República. Não sendo vocacionada às letras e instalada em terreno irregular, o que dificultava o planejamento urbanístico racionalizado, a cidade, com uma das maiores concentrações de escravizados da América, forçava a convivência entre “a burocracia e o povo”, fazendo com que “as normas legais e as hierarquias sociais [fossem] aos poucos se desmoralizando, constituindo-se um mundo alternativo de relacionamento e valores” (Carvalho, 2009, p. 159).


Por fim, “esta duplicidade de mundos, mais aguda no Rio, talvez tenha contribuído para a mentalidade da irreverência, de deboche, de malícia. De tribofe” (Carvalho, 2009, p. 159). A hipótese era de que esse microcosmo urbano, irregular em tantos sentidos (geográfica, social, intelectual e legalmente), não favorecia a organização de uma sociedade participativa, em que o governo pudesse ser compreendido como responsabilidade coletiva: “o citadino não era cidadão, inexistia a comunidade política” (Carvalho, 2009, p. 156).


Como já explicitei, não concordo com a tese de que o povo não compareceu à implantação do regime republicano, nem por ignorância, nem por esperteza. Contudo, se precisasse aderir à tese, faria questão de enfatizar o caráter “bilontra” do comportamento. Afinal, me parece mais sofisticado e digno um povo que rejeita a implantação de um regime político por deboche do que por apatia.


Referências

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letra, 2009.

MELLO, Maria Teresa Chaves. A modernidade republicana. Tempo, vol. 13, n. 26, (2009). Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-77042009000100002. Acesso em: 1 set. 2023.


Carlos Eduardo Pinto de Pinto é historiador e professor de história (UERJ)


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