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  • Foto do escritorLuciene Carris

Ecos de uma revolta: um antagonista na galeria de heróis?

Atualizado: 8 de abr.

Rio de Janeiro, 05 de abril de 2024.

Luciene Carris*



No último dia 11 de janeiro de 2024, o nome de Lauro Sodré foi inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília. O Panteão dos Heróis e Heroínas homenageia aqueles brasileiros que “tenham oferecido a vida em defesa e construção do país com excepcional dedicação e heroísmo”. Contudo, neste breve esboço biográfico sobre o político e militar paraense Lauro Sodré, é importante evidenciar o seu controverso envolvimento na Revolta da Vacina, que em novembro de 2024 completará seu 120º aniversário.

 


Livro dos Heróis e das heroínas da Pátria



Crédito da Imagem: Agência Senado.

Disponível em: https://l1nq.com/WDfWp Acesso em: 12 jan. 2024.



Em um curto período de apenas cinco dias, o Brasil testemunhou um episódio que marcou na história da saúde pública do país, bem como a história do Rio de Janeiro e o imaginário fluminense. No começo de novembro de 1904, a então capital federal, o Rio de Janeiro, se tornou o cenário da maior revolta urbana já registrada na cidade, que resultou em inúmeras prisões, pessoas feridas e muitos óbitos. Embora o gatilho para o levante popular tenha sido a lei que tornava obrigatória a vacinação contra a varíola, por trás desse evento havia um contexto social e político complexo e controverso. Contudo, não é a nossa proposta aqui explorar a Revolta da Vacina bem examinada em textos consagrados como os dos historiadores Nicolau Sevcenko, A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos Rebeldes (2018) e de José Murilo de Carvalho, Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (2005).


Nascido em Belém do Pará no dia 17 de outubro de 1858, Lauro Nina Sodré e Silva, mais conhecido como Lauro Sodré realizou seus primeiros estudos no Liceu Paraense. Contudo, vinha de uma família de tradição militar, tanto seu pai como seus avós eram militares, assim, assentou praça no 4º. Batalhão de Artilharia como voluntário, e seguiu, posteriormente prosseguiu seus estudos no Rio de Janeiro, onde ingressou como cadete na Escola Militar da Praia Vermelha em 1876. O jovem militar, assim como diversos de seus contemporâneos da instituição militar, tornou-se discípulo do professor Benjamin Constant e se envolveu na causa republicana e com o positivismo de Augusto Comte. Não por acaso, dois anos depois, em 1878, ao lado de outros jovens cadetes que juntos eram conhecidos como “mocidade militar”, fundou um clube secreto republicano que desafiava o regime monárquico.




Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves.



Crédito da imagem: G1/DF.

Disponível em: https://acesse.one/OLvfo Acesso em 12 jan. 2024.



Segundo o historiador Celso Castro,a “mocidade militar” era francamente republicana desde muito antes da “Questão Militar” de 1886-87, em geral considerada um marco da radicalização política dos militares ao final do Império. A partir de 1878, alunos da Escola Militar criaram clubes secretos republicanos e, em diversas ocasiões, cantaram ou tentaram cantar, desafiando seus superiores, a Marseillese, o hino revolucionário francês. É notável o radicalismo de sua atuação e o fato de que, nos escritos e nas memórias dos jovens “científicos”, não apareçam referências a professores ou políticos convertendo-os ao republicanismo. As referências a esse respeito levam sempre a livros por eles adquiridos e devorados e, principalmente, à influência de outros jovens “científicos” agrupados em associações e clubes de alunos (CASTRO, 2000, p. 26).


Em 1883, Sodré completou sua formação na Escola Superior de Guerra, obtendo o título de bacharel em ciências físicas e matemáticas. Dois anos depois de formado, enviou uma “Carta ao Imperador”, publicado no periódico A Província do Pará, na qual criticou a monarquia. No seu entendimento, a República era entendida como o modelo de governo mais avançado, representando os princípios científicos e o conceito de federação. Essa visão se opunha à do Império, considerado por ele como um símbolo de retrocesso devido à sua centralização política e ao catolicismo, que funciona como seu alicerce ideológico, defendia que a Monarquia era “um atestado de inferioridade mental e de baixeza de caráter” (CASTRO, 2000, p. 23).


Lauro Sodré teve um papel ativo na criação do Clube Republicano do Pará em 1886, que mais tarde se transformou em um partido político em 1890. De fato, a proliferação de clubes e partidos republicanos em diversas províncias refletia o descontentamento com os rumos políticos e contribuiu para o eventual esgotamento da monarquia. De fato, com a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, Sodré teve uma rápida ascensão profissional e política.


De acordo com o historiador Américo Freire, o tenente Lauro Sodré, que antes do 15 de novembro atuava como auxiliar de ensino na Escola Superior de Guerra (ESG), foi nomeado como lente substituto. Posteriormente, ele foi promovido a capitão e, em seguida, a major, conseguindo alcançar o posto de lente catedrático na ESG (FREIRE, 1997, p. 05). Além disso, atuou como secretário particular de Benjamin Constant no Ministério da Guerra (15/11/1889-12/3/1890) e, em seguida, foi nomeado para trabalhar na Secretaria de Estado da Instrução Pública, Correios e Telégrafos também como secretario (19/4/1890-20/1/1891). Em 1890, se elegeu deputado pelo Pará, no ano seguinte, tornou-se presidente daquele Estado entre 1891 e 1897.


No início de seu mandato, Lauro Sodré se tornou o único presidente de estado que não apoiou o golpe de estado liderado por Deodoro da Fonseca em novembro de 1891, o qual dissolveu o legislativo e instaurou o estado de sítio. Sem suporte político-militar, Deodoro acabou renunciando em favor de seu vice-presidente, Floriano Peixoto, que em momento algum havia endossado o golpe. A atuação decisiva de Sodré nesse episódio o transformou em um dos principais interlocutores de Floriano Peixoto. Sodré também teve um papel importante na luta contra a Revolta da Armada (1893-94), que colocou grande parte da Marinha contra Floriano Peixoto. Ele foi responsável pela criação da "Confederação Temporária do Norte", visando bloquear qualquer avanço dos rebeldes naquela região. Devido à sua relevância no governo de Floriano Peixoto, Sodré rapidamente se tornou uma figura de destaque no cenário nacional (FREIRE, 1997, p. 05).




Fonte: Fon-Fon, 06 jul. 1907, ano 1, n. 13, p. 21. Hemeroteca Digital da FBN. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/259063/376 Acesso em: 13 jan. 2024.



Disputou as eleições presidenciais de 1898, após a cisão do Partido Republicano Federal, foi escolhido candidato à presidência da República na sucessão de Prudente de Morais (1894-1898), apoiado sobretudo por republicanos e positivistas concorrendo contra Campos Salles, que foi eleito presidente da República entre 1898 e 1902. Sodré foi eleito várias vezes para o Senado Federal, representando o Pará em três mandatos (1897-1902, 1912-1916, e 1922-1930) e o Rio de Janeiro em um mandato (1903-1911).


Durante seu mandato como senador pelo Rio de Janeiro, Lauro Sodré se destacou por sua intensa oposição ao governo federal. Sodré combateu a "política dos governadores" e criticou a maneira como os partidos políticos funcionavam, os descrevendo como "agrupamentos em torno do poder". O radicalismo em seus discursos políticos, especialmente contra o governo de Campos Sales, foi notável, chegando ao ponto de defender o direito à insurreição política. Sodré frequentemente usava a expressão "Destruir para edificar", enfatizando sua postura desafiadora e jacobina (FREIRE, 1997, p. 32). Assim, em 1904, a conspiração civil e militar estava presente em diversos espaços de poder e na imprensa periódica como o jornal Comércio do Brasil, que aproximava setores descontentes com os rumos da política nacional como os monarquistas presentes no Exército e a oposição parlamentar, representada pela figura de Sodré. Não por acaso a campanha contra a vacinação obrigatória foi considerada como uma oportunidade para combater o governo (FREIRE, 1997, p.29).


Na sessão do Senado realizada no dia 09 de novembro de 1904, Lauro Sodré proferiu um discurso marcante às vésperas do início da Revolta da Vacina. Em seu pronunciamento, propôs a ruptura da ordem política estabelecida, demonstrando sua postura para lá de crítica frente sobre o cenário político da época. Nas suas palavras:


Senhores! As revoluções não se fazem quando se quer. Elas são fatos sociais, são fatos naturais; rebentam à hora própria, na ocasião oportuna, e então, é só assim que elas são verdadeiras revoluções, e só assim é que elas despertam para operar o melhoramento, o desenvolvimento e a salvação do povo à beira do abismo que ameaça engoli-lo (SODRÉ, Anais do Senado, 1904, v. 2, p. 73).

Desse modo, para Sodré, a criação da Liga Contra a Vacinação Obrigatória representava um movimento fundamentado nos interesses do povo, que contrário a essa lei, “uma monstruosidade jurídica do corpo de decretos”, portanto, a Liga deveria persistir como uma força orgânica de resistência dos valores republicanos (SODRÉ, Anais do Senado, 1904, v. 2, p. 73). De acordo com o aspecto constitucional, a Carta Magna de 1891 previa a liberdade individual dos cidadãos, o que, na interpretação dos opositores, garantia a recusa de tomar a vacina. Vale recordar que a lei que tornou a vacina obrigatória foi aprovada em 31 de outubro, apesar dos esforços consideráveis da oposição em tentar adiar o projeto e fortalecer a resistência contra essa medida. Contudo, se para oposição, como Lauro Sodré,


(...) a insurreição significava um esgotamento do programa político e econômico dos presidentes que sucederam a Floriano Peixoto, sendo, portanto, uma manifestação popular pela volta do republicanismo férvido e consagração de seus próprios projetos políticos. Porém, o drama vivido pela população se distanciava das causas que os líderes queriam imputar ao motim, uma vez que este era apenas uma luta por respeito às suas condições quanto indivíduos e seres humanos (NEVES; CICILIO; FERNANDES; GOMES, 2020, p. 296).

Além disso, não é demais recordar os motivos que levaram a população a se rebelar contra a vacina, segundo Tania Maria Fernandes:


A Revolta da Vacina resultou de um confluência de causas, especialmente de cunho social. A escravidão havia sido abolida apenas 16 anos antes, mas a população pobre, incluindo os ex-escravos, não era tratada como cidadãos plenos pelo governo. Essa parte da sociedade era ignorada nos seus pedidos de trabalho, moradia, direitos sociais, menos repressão. O nome do revolta, aliás, poderia nem fazer referência à vacina, mas a qualquer um desses outros motivos. A vacinação obrigatória, com pena de multa e prisão, foi apenas um dos fatores que se somaram e fizeram explodir a insatisfação geral (FERNANDES apud WESTIN, 2020).


Seja como for, independentemente das circunstâncias, a oposição acabou sendo derrotada. A Escola da Praia Vermelha, que era um centro de resistência, foi fechada. Alunos foram desligados do Exército Brasileiro, e muitos outros foram detidos, aprisionados e outros até mortos. Após o fim da Revolta, Lauro Sodré, que se encontrava ferido, foi preso e encarcerado a bordo da escuna Floriano, processado por sedição pelo governo federal, sendo libertado e anistiado em 4 de setembro de 1905. Convém, ainda, recordar que Lauro Sodré, se envolveu pessoalmente no movimento revolucionário. Depois do fim do seu mandato como Senador na Capital Federal, passou a atuar de forma discreta (FREIRE, 1997, p. 31).




O Malho, ed. 0118, 1904, p. 17, Hemeroteca Digital da FBN.

Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/116300/3846 Acesso em: 04 abr. 2024.


Assim, após enfrentar um período de ostracismo político no Rio de Janeiro, optou por restaurar seu prestígio em sua terra natal. Lá alcançou uma carreira política significativa: foi Senador pelo Pará de 1912 a 1917, Governador do Pará de 1917 a 1921, novamente Senador pelo Pará de 1921 a 1929, e mais uma vez ocupou o cargo de Senador pelo Pará em 1930. No entanto, ele não assumiu o cargo devido à dissolução do Congresso Nacional durante a Revolução de 1930, o que o levou a se afastar definitivamente do cenário político. Há de se destacar que além de militar e político, foi maçom. Além de artigos, discursos e manifestos, publicou A idéia republicana no Pará (1890), Palavras e atos (1896), Crenças e opiniões (1896), A evolução política do Brasil (1906) e Pelo norte da República.



O Malho, ed. 0119, 1904, p. 04, Hemeroteca Digital da FBN.

Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/116300/3873 Acesso em: 04 abr. 2024.



Lauro Sodré faleceu em 1944 no Rio de Janeiro, e em sua homenagem, diversas iniciativas foram realizadas. Uma delas foi a inauguração do Monumento a Lauro Sodré em 10 de junho de 1959, erguido a pedido do então governador do Pará, Magalhães Barata. Este monumento foi uma forma de celebrar o centenário de nascimento de Lauro Sodré, que ocorreu em 1958. Além disso, seu legado foi também lembrado no Rio de Janeiro, com uma rua no bairro de Botafogo recebendo seu nome, perpetuando assim sua memória e contribuição política.


Uma outra homenagem recente e significativa foi a inscrição de seu nome no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria em 2024. No entanto, essa homenagem pode parecer contraditória ao considerar sua atuação no movimento antivacina e a sua postura conspiradora ou golpista durante a Revolta da Vacina, levando em consideração o recente período da epidemia do coronavírus, que ceifou milhares de vidas em todo planeta, bem como contou com manifestações contra a vacinação e aos valores democráticos. Neste sentido, podemos considerar que alguns aspectos controversos da sua trajetória levantam questionamentos sobre a natureza e os critérios de reconhecimento de figuras históricas, evidenciando a complexidade e as contradições presentes na construção da memória coletiva.



Referências:


CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


CASTRO, Celso. A Proclamação da República. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.


CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


FREIRE, Américo. Entre a insurreição e a institucionalização: Lauro Sodré e a República Carioca. Textos CPDOC, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, n. 26, 1997.


FON-FON. Rio em Flagrante. Fon-Fon, Rio de Janeiro, ano 1, n. 13, p. 21, 06 jul. 1907. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/259063/376 . Acesso em: 13 jan. 2024.


NEVES; Raphaela Abud; CICILIO, Tiago da Silva; FERNANDES, Carlos M. Ferrari; GOMES, Daniel Machado. O discurso de resistência na Revolta da Vacina e os direitos civis. In: ROSA, Adriano; SALLES, Denise; RIBEIRO, Glaucia; CAVALCANTI, Marcia (orgs.). Direitos Humanos e Fundamentais. Rio de Janeiro: Pembroke Collins, 2020.


SENADO FEDERAL. Anais do Senado Federal. Segunda Sessão da Quinta Legislatura. Vol. 3. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905. Disponível em: https://encr.pw/dHQDI Acesso em: 12 jan. 2024.


SETEMY, Adriana. Lauro Sodré (verbete). Dicionário da política republicana do Rio de Janeiro (DPRRJ), CPDOC, FGV. Disponível em: https://acesse.dev/nShiV Acesso em: 12 jan. 2024.


SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: UNESP, 2018.


WESTIN, Ricardo. Interesses políticos e descaso social alimentaram Revolta da Vacina em 1904, Saúde, Agência Senado, 02 out. 2020, ed. 72. Disponível em: https://manage.wix.com/dashboard/80fa73f6-e51c-4c0c-bd7f-1c42fbff5cf7/blog/create-post Acesso em: 04 abr. 2024.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).


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