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Maquiavel e a Rainha Vermelha: sobre amar, temer e odiar o governante


São Paulo, 01 de julho de 2021

Rodrigo Pucci*


Na adaptação fílmica de “Alice no País das Maravilhas” de 2010, a antagonista da história, a Rainha Vermelha (interpretada por Helena Bonham Carter), apresenta-se como uma governante tirana. Dotada de uma anomalia física, cuja cabeça tinha o dobro do tamanho normal, e um temperamento extremamente explosivo e impiedoso, a rainha não admitia que os demais ao seu redor fossem pessoas “normais”. Sendo assim, ela estava cercada de uma corte bajuladora que, por medo, passou a usar próteses disformes, tais como orelhas ou narizes de tamanhos exagerados, para se igualarem à sua soberana tresloucada no intuito de não despertarem a ira dela. Ao descobrir a farsa de seu séquito, a Rainha manifesta a sua fúria. Nesse ínterim, além de soltar o famoso bordão “Cortem as cabeças”, a governante termina a cena dirigindo-se para o seu valete de confiança, e proferindo outra frase muito famosa: “É melhor ser temida do que ser amada”.



Crédito da imagem: Frepik


Interessa, aqui, recordar que tal frase, apesar de ser repetida mais de uma vez neste longa-metragem, não é de autoria dos roteiristas deste filme. Ela, na verdade, pertence aos escritos de um pensador político do século XVI, que testemunhou momentos marcantes da política europeia de seu tempo, e se tornou um personagem que, tal qual a Rainha Vermelha, entrou para a História associado, também, à figura da tirania: Nicolau Maquiavel (1469 – 1527).


É em “O Príncipe”, a obra mais famosa de Maquiavel, redigido em 1513, que se encontra o raciocínio que tornou a frase tão famosa, precisamente no capítulo XVII, intitulado: “A crueldade e a piedade; e se é melhor ser amado que temido ou o contrário”. Neste capítulo, o pensador de origem florentina, cujo raciocínio é marcado por sua lógica calculista e estratégica, exemplifica que entre a crueldade e a piedade, o governante deveria almejar ser tido como piedoso, mas com cuidado para que a piedade não fosse utilizada de modo a colocá-lo como fraco. Assim, alerta para o fato de que aqueles que detêm o poder, se perderem muito tempo buscando ser amados, distribuindo benesses e favores mil, acabariam por deixar passar muitas desordens. Logo, ele responde ao leitor que entre ser temido ou amado, o ideal seria acumular as duas alcunhas. Porém, na incapacidade de, em apenas uma vida humana, alcançar os dois ideais, e na falta de um deles, seria mais seguro, tanto para o governante quanto para o seu povo, que ele fosse temido. Pois o temor lhe asseguraria certa estabilidade em tempos de crises, fossem elas internas ou externas. Ao passo que ser amado (ou bajulado) nada lhe garantiria, além da ingratidão dos que lhes cercam em momentos difíceis. Nas palavras de Maquiavel: “Os homens têm menos escrúpulo em ofender um que se faz amar do que um que se faz temer” (MAQUIAVEL, 2017, p. 195).


Assim, quando a Rainha Vermelha descobriu que seu séquito apenas a bajulava por medo, e que não possuíam nenhum apreço por ela, ela chega à mesma conclusão de Maquiavel. Entretanto, nem ela, nem os leitores de “O Príncipe” que fizeram ecoar pelos séculos seguintes a apologia à tirania sobre o príncipe temido, perceberam o alerta que Maquiavel traz logo em seguida: “Deve, não obstante, o príncipe fazer-se temer de modo que, se não adquirir o amor, ao menos fuja do ódio: porque pode muito bem ser ao mesmo tempo temido e não odiado” (MAQUIAVEL, 2017, p. 195).


A linha tênue que separa o temor do ódio foi muito pouco compreendida. A Rainha Vermelha é evocada neste texto, porque ela é uma representação pertinente desta condição. Em seu caráter destemperado, explosivo, controlador, irascível, ela não conseguiu ser amada, não criou alianças nem sequer conseguiu comprar amizades ou alianças por um período de tempo, ao contrário, só criou inimigos. Ao mesmo tempo, não conseguiu ser temida no sentido de construir ao seu redor uma aura de respeito, de imponência, de solidez. É esse caráter que Maquiavel delineia quando diz que o príncipe deve ser temido: ele deve ser capaz de impor respeito. Nos devaneios da Rainha Vermelha, ela só conseguiu que todos que a cercavam a odiassem.


Maquiavel alerta para que o príncipe não chegue ao nível de ser odiado, porque as consequências são sempre devastadoras. Aqui, surge outro aspecto muito presente nas análises políticas dos textos maquiavelianos: a incerteza da Fortuna. Há algo que vai além da vontade dos príncipes, e este algo é o devir dos tempos, que muda com os ventos do destino, e ao qual os governantes deveriam tentar se adequar. Na obra seguinte a “O Príncipe”, “Os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, Maquiavel deixa muito claro o que pode acontecer com um governante frente ao sabor da Fortuna:

“Disso provém que as repúblicas têm vida mais longa e mais demorada boa fortuna que os principados, porque podem, mais que os príncipes, acomodar-se à diversidade dos tempos, em razão da diversidade dos cidadãos que nelas há. Porque o homem que está habituado a proceder de um modo nunca muda, como se disse; e, necessariamente, quando os tempos mudam e deixam de conformar-se a seu modo, advém-lhes a ruína”. (MAQUIAVEL, 2007, p. 352).


Com isto, fica claro que um governante, tal qual a Rainha Vermelha, que só consegue criar ódio sobre si próprio, colherá o que lhe for cabido. E o que cabe aos que são odiados é o extermínio, a aniquilação, a sua queda, seja por força interna do povo oprimido que se volta contra o opressor, seja por forças externas às quais se abrem portas e brechas para que tome o poder no lugar do ser odiado. Não é à toa que, ao se rebelarem, os súditos da Rainha Vermelha bradam contra a monarca: “Fora, cabeçuda!”.


REFERÊNCIAS: ALICE in Wonderland. Direção: Tim Burton. Walt Disney Pictures: EUA, 2010. 108 min.


MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Editora 34, 2017.


MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Tradução MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007.



* O nosso convidado da quinzena 01-15 de julho é Rodrigo Pucci, atualmente Doutorando em História Social pela PUC - SP.

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