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Mais um ano depois de 1964: pretérito cada vez mais imperfeito

Rio de Janeiro, 01 de abril de 2022.

Daniel Pinha*


Os desafios de pensar o golpe de 1964 hoje são imensos. Estamos falando de um passado inacabado, nas mais diversas formas de violência e autoritarismo. E hoje esse passado parece cada vez mais imperfeito.



Crédito da imagem: Site Memorial da Democracia.



O golpe inaugurou um período de exceção que suspendia as liberdades constitucionais de 1946, aquela frágil democracia. Interrompeu possibilidades de futuro e avanços nos direitos sociais, como a reforma agrária, o voto dos analfabetos e a superação do atraso e do subdesenvolvimento. A democracia se tornara nos anos 50 um fenômeno eleitoral e de massas, pluripartidario - apesar da cassação do Partido Comunista - e com movimentos sociais e culturais em ebolição, no campo e na cidade. Ligas Camponesas, Centro Popular de Cultura, Cinema Novo são apenas alguns exemplos ilustrativos dessa agitação. O caminho para a cidadania plena era longo, mas havia uma agenda nos anos 50 amparada no conceito de democracia, que ora se reduzia ora se alargava, mas estava em disputa. Uma disputa que o Golpe de 64 dissolveu em nome de um ideal autoritário, sob a liderança militar e com apoio civil.


A Ditadura radicalizou a violência contra grupos vulneráveis social e economicamente, como trabalhadores, mulheres, negros, indígenas, comunidade LGBT. Sujeitos sociais subjugados pela violência de Estado em todas as épocas se tornaram ainda mais vulneráveis no período da Ditadura. É preciso ampliar hoje a compreensão de quem foram as vítimas deste regime, para além dos militantes de luta armada organizados em grupos de resistência - eles também vitimados pelo regime: favelados forçadamente removidos de seus locais de moradia, trabalhadores mortos em função da precarização nas condições de trabalho, indígenas desassentados, povo negro perseguido por aparelhos de repressão policial, mulheres inferiorizadas em ambiente privado e público, violentadas por serem mulheres. O que estava em jogo não era apenas um regime político, mas a imposição de um padrão de moralidade centrado na figura branca e masculina, negando o racismo em nome de uma falsa democracia racial.


Em resumo: tem muito mais coisa em jogo do que as histórias contadas pelos militares, centradas na ideia de guerra e inimigo comunista interno e na necessidade de adesão ao capitalismo liberal norte americano. A Ditadura atingia um universo muito mais amplo de sujeitos políticos e não apenas aqueles que se organizavam politicamente para enfrentá-la.


A democracia brasileira formalizada com a Constituição de 1988 rompeu com os moldes institucionais da Ditadura, mas manteve inalteradas algumas estruturas daquele período, seja na violência do Estado materializada na ação policial, seja na presença dos militares na política. O arranjo democrático possibilitou a reprodução pública de uma memória que nega ou justifica a existência do período ditatorial. Fez falta para o caso brasileiro uma justiça de transição capaz de investigar, responsabilizar e punir os agentes militares e civis da Ditadura, pelos crimes cometidos no período.


Sem enfrentar o trauma da Ditadura, a democracia brasileira se tornou mais vulnerável aos ataques autoritários. Políticas governamentais reparatórias ocorreram e foram importantes anos anos 90 e 2000, mas muito pouco se fez para identificar, publicizar e punir os responsáveis pelos crimes contra os direitos humanos cometidos desde 64. A comissão nacional da verdade (2011-14) deu grandes passos, mas provocou também um sentimento revanchista por parte dos militares.


Os trabalhos da CNV e a divulgação de seus resultados se deram em meio a uma profunda crise democrática que ainda hoje nos atinge. O que surgiu como crise de representação política em 2013 se tornou com a Operação Lava Jato um movimento mais amplo de criminalização da política e de ataque a democracia em nome de um pretenso combate à corrupção.


A democracia de 88 não conseguiu construir formas de autoproteção e o golpe parlamentar de 2016 animou, ainda mais, a nostalgia autoritária de 1964. O resultado não poderia ter sido pior: em 2018, trinta anos após a aprovação da Constituição, foi eleito para a presidência um inimigo declarado do regime democrático, a figura que encarnava a presença da Ditadura no parlamento. O Deputado Jair Bolsonaro comemorava da Tribuna, ano a ano, o aniversário do golpe de 64, assim como comemorou em dezembro de 2008 o aniversário do AI5.


Decerto que com Bolsonaro no governo o passado da Ditadura estará presente na presidência. De um ponto de vista simbólico, na nostalgia autoritária e no enaltecimento de uma moral conservadora, mas também com medidas práticas, através do fortalecimento armamentista civil e do aparato policial repressor.


A cada ano que passa, a mirada de 1964 parece mais distante e, ao mesmo tempo, mais próxima. Não há outra saída senão enfrentar esse pretérito imperfeito com os instrumentos da democracia que ainda nos restam.



* Daniel Pinha é professor do Departamento de História da UERJ.



Para saber mais:


Memorial da Democracia. Disponível em: https://bityli.com/MPYEl Acesso em: 31 mar. 2022.


História da ditadura. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/ Acesso em: 31 mar. 2022.


O DIA QUE DUROU 21 DIAS. Direção: Camilo Tavares. Produção: Camilo Tavares. São Paulo: Pequipi Filmes, 2012 (77 min.). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4ajnWz4d1P4 Acesso em: 31 de mar. 2022.


Memorias Reveladas. Disponível em: http://www.memoriasreveladas.gov.br/ Acesso em: 31 mar, 2022.

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