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Entre a arte, o banzo e a inveja: a extraordinária carreira de Bidu Sayão


Toronto, 15 de outubro de 2021.

André Sena*


Algumas décadas atrás, o historiador norte-americano Peter N. Stearns publicou uma obra curiosa e muito bem documentada de história social, chamada Inveja: a evolução de uma emoção na História dos Estados Unidos. A obra integrava o sétimo volume de uma não menos interessante coleção editorial chamada A Experiência Social Americana. No livro, Stearns nos apresentava antes de qualquer coisa, um estudo acerca da maneira pela qual a questão da inveja era vista pelos diversos componentes do tecido social norte-americano nos últimos 150 anos.


crédito: Bruce Burroughs


Utilizando uma metodologia típica da história serial, o historiador nos presenteou na segunda parte do livro com um levantamento complexo de práticas institucionais, que tinham por finalidade a descontinuidade da inveja como um sentimento espontâneo, natural e impune no meio social. Tanto no campo educacional quanto no penal, produziu-se na sociedade americana, ao longo de quase dois séculos, uma espécie de “guerra à inveja”, que de alguma maneira reduziu homicídios ditos “justificáveis” ou relacionados ao ressentimento pelo sucesso do outro. O historiador não deixa de ressaltar, entretanto, que a sociedade de consumo americana ainda produz um jogo perverso de competição pelo acúmulo de bens e serviços, que tem na “prática da inveja” um de seus mais bem sucedidos alicerces.


A psicanalista brasileira Maria Rita Kehl também se debruçou sobre o assunto. Há algumas falas dela gravadas em vídeo na internet sobre a questão da inveja como um dos mais dramáticos aspectos das relações humanas. Seu livro, Ressentimento acaba de ser reeditado em 2020, e ali a autora discute a questão da pulsão de “vingança eternamente adiada” e também a projeção no outro do que nos faz sofrer, provocando entre nós e nossos pares relação de causalidade tão fantasiosa quanto destrutiva.


A mais famosa cantora lírica brasileira, Balduína de Oliveira Sayão se tornou ainda mais célebre em virtude de uma espantosa vaia que sofreu em uma de suas últimas apresentações no Brasil, mais especificamente no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1937. Tudo indica que a vaia teria sido combinada a priori por ressentidos inimigos, que invejavam o sucesso de uma das maiores sopranos de todos os tempos, que naquela noite, interpretava Pelléas e Mélisande, ópera em 5 atos, de Claude Debussy. E como a vida pode muitas vezes imitar a arte, o enredo da ópera, que Debussy insistia em chamar de drama lírico, também gira em torno do ressentimento, ciúmes e da inveja. A cantora, que deixou para sempre o Brasil pouco depois, parece nunca ter se deixado abalar pelo ocorrido.


Bidu Sayão, como ficou conhecida de todos nós, era dona de uma rara voz e desempenhou um papel fantástico na promoção da música e da ópera no Brasil e alhures. Apresentou-se em vários países do mundo e foi celebrada por cantores populares como Edson Cordeiro e pela Escola de Samba Beija-Flor, em 1995, com o enredo Bidu Sayão e o Canto de Cristal.


Dez anos de estudos na Itália e outros 22 nos Estados Unidos, onde terminou seus últimos dias, marcam a formação da carreira dessa artista. A piccola brasiliana, apelido dado a ela por Arturo Toscanini, em momento algum minimizava sua identidade nacional, declinando da confortável armadilha de um possível cosmopolitismo qualquer. Ao se apresentar diante de Franklin Delano Roosevelt recebeu do presidente americano a oferta de tornar-se cidadã dos Estados Unidos. Recusou.




crédito: Amazon.


A questão do pertencimento, produzida pelas identidades nacionais a partir dos movimentos de nacionalidade surgidos no século XIX, faziam e ainda fazem enorme sentido para nós. Ainda que sob a ameaça de sequestro de setores raivosos e obscuros, em tempos confusos como os nossos, a ideia de patriotismo resiste aos mais diversos golpes e tentativas de monopólio de seu significado. Bidu Sayão sempre se disse uma patriota, e seu exílio estético e profissional nunca retirou dela a convicção, de que ao se apresentar nos mais sofisticados teatros líricos do mundo, representava o Brasil de alguma maneira.


Fico ofendida quando dizem que não sou patriota. Sempre representei minha terra com muita dignidade. Todas as minhas colegas do Metropolitan Opera House eram americanas naturalizadas. Menos eu, que vivo há 35 anos nos Estados Unidos. (entrevista concedida a revista Veja, em 1973)

Antes de deixar de residir definitivamente no país, entre os anos de 1935 e 1936 Bidu Sayão circulou tanto pelas capitais como pelo interior de uma República que ainda tentava se encontrar (encontrou-se?). Levou a arte do canto lírico onde pode, de forma exaustiva pelo país, cantando em teatros e cinemas, “de Manaus a Santana do Livramento”. O elitismo natural do repertório operístico encontrava na delicadeza da voz de Bidu Sayão, a universalidade que conquistava tanto o público erudito quanto o popular, por onde a cantora passou nessa turnê brasileira, que coincidia com os mesmos anos em que Sérgio Buarque de Holanda escrevia Raízes do Brasil.


O ato de devolver ao seio da sociedade brasileira, tudo o que aprendera em países como Romênia e Itália, onde recebeu suas primeiras instruções de técnica vocal, confirma o imperativo da responsabilidade social que todo artista deve ter para com seu povo. Perto ou longe dele. E o repertório tipicamente europeu que caracterizou muitas de suas performances nunca foi capaz de anular nela a paixão pela música brasileira, que Bidu sempre considerou a mais vivaz e diversa de toda a América Latina. Villa-Lobos, Francisco Mignone e Lorenzo Fernandes foram frequentemente cantados por ela, e jamais escondeu seu desejo de interpretar Antônio Carlos Jobim e Dorival Caymmi, compositores tardios para uma cantora do início do século XX.


A bela menina que deslumbrava multidões e conquistou seu lugar ao sol, tal como diz a letra do samba-enredo da Beija Flor de Nilópoles, partiu desta vida em 1999, aos 97 anos de idade, deixando uma marca indelével na história internacional da música lírica. Deixou ainda a lição de que a relação entre o indivíduo e seu país é muito mais potente do que qualquer situação radicalmente diaspórica. O Brasil é imenso, continental; mas não apenas de nossas bocas para fora. A pátria é uma questão ainda existencial para a maioria de nós, e nenhum governo ou plataforma política circunstancial será capaz de domesticar nossos afetos por ela, dando-lhe um significado de palanque, plastificado e disfarçado em gritos de guerra de ocasião.


E Bidú Sayão é a prova disso.


*André Sena é historiador (UERJ).


Referências:

STEARNS, Peter N. The Evolution of an Emotion in American History. NYU Press, 1989.

KEHL, Maria Rita. Ressentimento. Ed. Boitempo, 2020.

DANIEL, Denis Allan. Bidú. Passion and Determination. Page Publishing, 2020.

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