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Em busca do meu passado: ancestralidade e dna

Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 2022.

Luciene Carris*


Recentemente uma pessoa próxima confessou que realizou um teste de ancestralidade genética. De início, achei a situação próxima à realidade da ficção científica. Refleti se isto era realmente possível, ou melhor, acessível. Ponderei com os meus botões sobre os valores dessa pesquisa. Daí, comecei a navegar pelas diversas páginas do “google” para entender do que se tratava efetivamente o tal do mapeamento do DNA. Constatei que realmente é disponível no Brasil, e que também existem empresas neste segmento há mais de dez anos.


Crédito: wix.


Aliás, o mapeamento pode ser bem mais específico, aí depende do gosto do freguês e do seu bolso: básico, stantard e completo. Este último é o realmente o mais abrangente, até contempla doenças genéticas do indivíduo e a escala de risco genético. Além disso, de acordo com a empresa é possível descobrir as linhagens dos ancestrais maternos e paternos, e mensurar até as rotas migratórias dos nossos antepassados!!!! O certo é que a pessoa compartilhou comigo alguns dos dados que recebeu, uma espécie de relatório que disponibiliza um mapa mundial e uma tabela com as porcentagens da proveniência do DNA, além de dados históricos sobre as diversas localidades encontradas no estudo genético com bibliografia até. Através do envio de amostras de saliva, o meu conhecido descobriu que tem uma origem majoritariamente europeia, cerca de setenta por cento, com destaque para Itália. Da África revelou uma porcentagem surpreendentemente pouco expressiva, com destaque para o ocidente africano.


É inegável que fiquei curiosa para descobrir as origens dos meus ancestrais. Como grande parte das famílias brasileiras, pouco sei sobre o passado da minha família, sobre os meus bisavós e outros antepassados. Como a minha família é nordestina, suponho que não preciso de muita elocubração para saber que tenho no sangue os originais da nossa terra, os nossos indígenas, os africanos escravizados e os europeus, como posso observar em alguns dos sobrenomes da família paterna como os “Maciel”. A memória oral da família meio que se perdeu ao longo das gerações, assim como parece um tabu trazer à tona determinadas informações sobre o passado, sobre os indivíduos e as suas histórias. O desenraizamento e a diáspora familiar para outros cantos do território brasileiro, em busca de maiores possibilidades de trabalho, contribuíram para um sentimento de dispersão socioafetiva e identitária. Outro aspecto crucial é o apagamento da contribuição dos elementos de origem afro-indígenas na cultura brasileira, que sem dúvida também dificulta localizar e identificar narrativas orais e documentais de muitas famílias.


O certo é que ao pesquisar sobre o mapeamento genético da ancestralidade sobressaíram diversos estudos acadêmicos e notícias de jornais. Muito trabalhos apontaram para a retomada polêmica do conceito de “raça” por alguns, mas, por outro lado, revelaram o intenso combate e a substituição da palavra pelos geneticistas através do emprego de “grupos continentais”. Como apontou Neves,


o problema de aplicar a esses marcadores de ancestralidade geográfica a mesma lógica que se aplica a raça é que imaginar alguém 100% por cento europeu significa imaginar alguém 100% branco. Que podem tanto alimentar ideias de supremacia racial baseado na quantidade de “sangue puro” que alguém tem ou traçar linhas de pertencimento racial que ignorem os fatores sociais e culturais por trás das ideias de raça (Neves, 2020, p. 04).


De fato, o racismo científico ficou impregnado na sociedade de maneira estruturante. A dicotomia da “raça superior” e da “raça inferior”, a partir de diversas correntes como determinismos social e geográfico, o darwinismo social e até a eugenia foram utilizados como formas de explicar, de controlar e de dominar muitos povos. Com o final da Segunda Guerra Mundial, o conceito de raça passou a ser social, não biológico. No Brasil, se perpetuou a ideia de democracia racial até a década de 1970, então questionado e combatido pelo movimento negro. Contudo, parece que a humanidade retornou ao ponto de origem. O filósofo camaronês Achille Mbembe apontou para os desdobramentos dessa retomada da biologização da raça a partir da pesquisa sobre o genoma. No seu entendimento,


longe de pôr fim ao racismo, um novo desdobramento da raça ancorou no pensamento do genoma. Ora pela exploração de origens genômicas das doenças em certos grupos, ora por genealogias das origens geográficas de indivíduos, o recurso genético tende a confirmar as tipologias raciais oitocentistas (branco caucasiano, negro africano, amarelo asiático) (Mbembe, 2014, p. 45).


Longe de trazer conclusões apressadas sobre o uso desse mapeamento genético da ancestralidade neste breve texto, pois demanda uma ampla pesquisa, pondero sobre a necessidade de uma reflexão sobre o assunto. As implicâncias sociais e políticas podem ser assustadoras, envolvem aí questões relacionadas à bioética, no que diz respeito à privacidade e à autonomia, bem como a possibilidade de discriminação e de estigmatização dos indivíduos. Me indago quais as implicações de um grande banco genético em empresas privadas internacionais? Outras questões como as consequências da racialização de doenças ligadas à determinados grupos humanos de determinadas regiões do globo; bem como a utilização do genoma humano para fins jurídicos-legais, como uma forma de prever suspeitos de determinados crimes a partir de uma simples amostra de sangue ou saliva. Parece até um desses filmes “blockbuster” do astro hollywoodiano Tom Cruise, “Minority Report: a nova lei”, que prevê através de figuras paranormais crimes e pune antecipadamente os culpados.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).


Referências:

NEVES, Igor Oliveira. Quem precisa de ancestralidade? A narrativa dos testes de DNA no jornalismo brasileiro. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – VIRTUAL – 1º a 10/12/2020. Disponível em: http://www.intercom.org.br/sis/eventos/2020/resumos/R15-1536-1.pdf

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014.

SCHWARCZ, L. M. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

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