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Breve memorial pandêmico e sentimental

Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2021.

Luciene Carris*



De acordo com o Painel do Varejo de Livros, o consumo de livros no Brasil aumentou cerca de 48, 5% no primeiro semestre de 2021 em comparação com o mesmo período no ano anterior. Outro dado interessante é a ficção, o gênero literário mais procurado, seguido pelos livros de gastronomia, infantis e publicações sobre negócios. Podemos inferir que a escolha não é a aleatória. Com o isolamento e o distanciamento social, provocados pela pandemia do coronavírus, muitos hábitos mudaram. Acredito que aprender a cozinhar foi um deles. Com as crianças em casa, a criatividade ultrapassou as barreiras dos desenhos, dos filmes infantis e de jogos. Assim, espero que esses novos leitores permaneçam fiéis a esse hábito, que só tem de acrescentar ao indivíduo. E livros sobre negócios, reflito sobre as possiblidades de superar as dificuldades econômicas, considero que seja uma consequência esperada da crise que atravessamos, e que deixará consequências gravíssimas por um bom tempo.




Crédito: Wix.


O certo é que a leitura aprimora vocabulário, auxilia na construção do pensamento, incita o senso crítico, desenvolve a imaginação, a memória e a criatividade. Além disso, possibilita um conhecimento amplo. Há quem diga que quem lê se torna uma pessoa mais empática, porque consegue se identificar na perspectiva do outro, a tal da alteridade. Aliás, algo que anda faltando por aí. A falta de se solidarizar e de compreender a realidade do outro, de se ver no lugar do outro, pode contribuir para a intolerância e para a violência. Talvez seja um lugar-comum o argumento aqui exposto, pois é devidamente repetido em tantos canais de comunicação, nas escolas e nas faculdades.


Cada um lidou e lida como pode ao longo dessa pandemia. Por alguma razão me reinventei através da escrita e das inúmeras possibilidades que as mídias digitais oferecem. Mas um outro mercado se proliferou também nos últimos dois anos. O consumo de podcasts aumentou 57% entre os brasileiros, e o Brasil se tornou o 5º no ranking mundial na sua produção.


Então, me aventurei na criação de um podcast com Luzimar Soares, o Sarau da Casa Azul, em junho de 2020, voltado para a disseminação de conhecimento para um público variado, até ultrapassamos 50 episódios. Bom, não é bem uma novidade essa tentativa de atuar nesse campo da historiografia, a História Pública. Anteriormente, participei de um canal no Youtube, o Entreconexões, ao lado do historiador Vicente Saul e do videomaker Luis Felipe Mano (está online para quem tiver curiosidade). Ainda contribui efemeramente para um blog que foi extinto, o Textão, ano passado. Desde junho de 2021, uma nova parceria, o trio André, Luciene e Luzimar vem se dedicando a construir um trabalho interessante com o Box Digital de Humanidades, trazendo reflexões e provocações a cada quinzena. Contamos ainda com a generosa participação de um convidado. O bacana disso tudo é a possibilidade de observar olhares e caminhos distintos na construção de seus textos.

Não posso ignorar nesse breve memorial pandêmico a colaboração com um pequeno ensaio no “Arquivo Pandemia: Diários íntimos, recortes poéticos, históricos, geográficos, políticos, antropológicos, artísticos, psicossociais do isolamento”, organizado pela querida Andréa Casa Nova Maia e por sua mãe Vera Casa Nova. Outra contribuição digna de nota foi para a plataforma “Memórias Covid-19” (@memoriacovid19), coordenado pela pesquisadora Ana Carolina Moura Delfim Maciel.


Uma outra iniciativa relacionada à pandemia foi a colaboração na produção de um documentário em curta-metragem, que apresenta os olhares de onze mulheres completamente diferentes sobre o período nefasto da quarentena no primeiro semestre de 2020. O projeto contou com dois dedicados parceiros e amigos, a roteirista Leila Meirelles e o videomaker Luis Felipe Mano. “Tempo Suspenso” foi gravado pelos celulares de cada uma dessas mulheres, editado, montado e construído à distância. Assim, me achei envolvida diretamente com a construção de uma memória sobre esse acontecimento que sacudiu o mundo. Desse modo, observo a importância dos relatos e da escuta das pessoas no processo de preservação dessa memória sobre a Covid-19.


Conectar pessoas, divulgar conhecimento, aprender com as tecnologias digitais tem sido uma tarefa constante nos últimos tempos. Em sintonia com a história urbana e a história pública, a colaboração com o museu virtual Rio Memórias é um experimento singular. Em junho completou dois anos de atividade sob a curadoria de Lívia Baião. Para quem não conhece, o museu dispõe de oito galerias (Rio Desaparecido; Rio de Sons; Rio de Conflitos; Rio em movimento; Rio, cidade febril; Rio, cidade em transformação; Rio dos estudantes e Rio Cinético), além disso, desenvolve projetos e atividades relacionadas à educação nas escolas públicas. É notável a preocupação com a memória, o patrimônio material e imaterial, bem como a forma de realizar à divulgação da história do Rio.


Voltando aos livros. Ainda organizei ao lado do amigo de longa data da UERJ, André Sena, uma coletânea volumosa sobre as relações internacionais em um mundo pós-pandemia. A empreitada contou com a colaboração valiosa de estudiosos de áreas distintas, nacionais e estrangeiros. Ainda não superamos a pandemia como imaginávamos naquela ocasião. Foi uma colaboração que envolveu o distanciamento geográfico, pois ele mora em Toronto atualmente, e eu, no Rio de Janeiro. A parceria e a amizade têm me levado à caminhos significativos de autoconhecimento, assim me senti ao escrever textos para as obras de Luzimar Soares (A dor de ser Ana e Nas ondas do mar carioca) e de Andrea Casa Nova (Recortes do feminino). Em tais ocasiões, me deparei com personagens femininos e os trabalhadores do mar, sujeitos históricos até pouco tempo ignorados na história.


O ápice dessa história foi um livro que demorou para sair por diversas razões. É uma pesquisa que revela um pouco da minha trajetória e da minha relação de pertencimento com o lugar onde moro desde 1981, algo próximo de um "ensaio de ego-história". Quando optei por uma narrativa sem o jargão usual, mas com o comprometimento com o trabalho do historiador, não pensei em um público diverso do acadêmico, pois foi realizado no âmbito do departamento de História da Puc-Rio sob a supervisão amiga de Antonio Edmilson Martins Rodrigues. O certo é que o recorte 1884 e 1962 examinou a dinâmica do movimento operário das fábricas têxteis, a partir da imigração da família Carris para o Jardim Botânico, a industrialização na zona sul ainda é desconhecida de muitos. E o livro saiu do universo acadêmico para outros espaços.


Daí uma surpresa ocorreu, pois fora deste universo que estou habituada, houve um questionamento sobre as minhas escolhas e sobre a condução da minha narrativa. Aí me recordei de uma passagem interessante de Leonardo Boff sobre a relação entre o leitor, o contexto e o texto, que reproduzo: “todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura”.


Em alguma medida há o livro que o autor escreveu e aquele outro que o leitor concebeu depois da leitura. De fato, o leitor parte das suas experiências pessoais e expectativas, da sua subjetividade, para dialogar com o texto, o que se aproxima dos limites da interpretação apontados por Umberto Eco em sua obra homônima. Quando uma obra segue para o mundo, não temos mais o "controle" sobre o que originalmente idealizamos ou construímos como narrativa. Nesse ponto, o leitor denuncia a falácia da autoridade do autor.


Portanto, é um modo de pensar, que serve para refletir sobre as diferentes formas da minha atuação como historiadora, bem como uma reflexão sobre os temas da pequisa que escolhi e os caminhos a trilhar. As mídias e as redes sociais demonstram como a forma de se relacionar com o público se alterou. O uso de novas tecnologias facilitou a difusão do conhecimento e a conexão entre as pessoas. Constato através das interações e do engajamento através da velocidade dos comentários, das críticas e dos compartilhamentos, etc, podendo ser positivo ou negativo (fakenews, discursos de ódio).


Daí retorno ao início do texto sobre a importância da leitura e do senso crítico. Ficou evidente com essa experiência singular o encontro ou desencontro entre o autor e o leitor, e o surgimento de novas interpretações e releituras. Assim, encerro esse breve memorial pandêmico e sentimental, e aproveito para agradecer aos encontros, reencontros e às parcerias firmadas.


Feliz Natal, Boas Festas e até 01 de janeiro de 2022.


Até breve.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).



Referências:


BERNARDO, Luzimar Soares. A Dor de Ser Ana. Curitiba: CRV, 2021.


________________________. Nas ondas do mar carioca: O moderno e as tradições vistos a partir da história dos pescadores da Colônia Z – 13 na praia de Copacabana. São Paulo: e-Manuscrito, 2020.


BOFF, Leonardo. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Disponível em: https://www.campinas.sp.gov.br/governo/gestao-e-controle/cursos/anexo-encontro-conselheiros/ponto-de-vista.pdf


CARDOSO, Luciene P. Carris. Histórias do Jardim Botânico: um recanto proletário na zona sul carioca (1884-1962). Rio de Janeiro: Telha, 2021.


MAIA, Andrea Casa Nova. Recortes do Feminino: cristais de memória e história de mulheres nos arquivos do tempo. Rio de Janeiro: Telha, 2020.


SENA, André; CARRIS, Luciene. Relações Internacionais em um Mundo Pós-Pandemia: Permanências e Descontinuidades. Porto: Cravo, 2021.


Sarau da Casa Azul Podcast. Disponível no Spotify: https://open.spotify.com/show/3pzlAi3bc2jBQB2mpI3Yop


Rio Memórias. Disponível em: https://riomemorias.com.br/


Plataforma Memórias Covid-19. Disponível em: https://www.sae.unicamp.br/portal/pt/3350-plataforma-memorias-covid-19


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