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A literatura enquanto fonte de pesquisa histórica

Guarulhos, 15 de fevereiro de 2022

Luzimar Soares*


Recentemente, para uma pesquisa histórica, usei como fonte a literatura, mais especificamente, três obras literárias brasileiras que, a mim, são muito caras. Utilizar a literatura enquanto fonte histórica me proporcionou uma satisfação incomensurável. Sou apaixonada por leituras, de quaisquer tipo ou natureza, até as que não gosto eu gosto. Contraditório, porém real. Quando tenho a necessidade de ler algo que não tenho afeição, aproveito para, no mínimo, melhorar meu vocabulário. O que significa dizer que ler é muito mais do que prazer, é praticamente um vício, um ato de resistência, uma forma de navegar, voar, viajar pelas entrelinhas, criar imagens e descobrir novos mundos, e, algumas vezes, revisitar lugares conhecidos.


Utilizei três livros e, de cada um deles, retirei pequenos excertos para iniciar o trabalho. Reproduzo aqui os trechos:


“E, o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos.”

Graciliano Ramos - Vidas Secas


“Iam para o desconhecido, para um barracão de emigrantes, para uma escravidão de colonos...”

Raquel de Queiroz – O Quinze


“Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita, e sem nenhuma datilografia, já escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário”.

Clarice Lispector – A hora da estrela


Os três livros têm algo muito importante em comum, todos tratam da migração, mais especificamente, da migração nordestina acontecida outrora, mas que, ainda, tem peso na atualidade. As sagas de Fabiano e Chico Bento que, ao lado de suas famílias, encontraram uma maneira de resistir e seguiram pelas estradas, são, para além de muito parecidas, o retrato de uma quantidade tão grande de pessoas, que sequer há um registro oficial dos governos dessa afluência. Os flagelados foram retratados na literatura, nos jornais, viraram até cordel. Mas, muito mais do que essas leituras e representações, foi um período extremamente cruel que dizimou uma grande chusma de pessoas e alterou, para sempre, o curso de muitas vidas.



Retirantes, Cândido Portinari (1944). Crédito: Acervo MASP.


Não à toa, as três obras narram mortes, humilhação, definhamento, fome. Como disse Clarice Lispector em sua última entrevista, a pobreza é um dos aspectos que a literatura narra, e essas obras o fazem de maneira tão fidedigna que parece até realidade. Por isso, utilizar essas narrativas como fonte histórica tem um valor tão grande.


Para traçar um comparativo do lúdico com o real, pode-se utilizar uma passagem de “O Quinze”: “E estendendo a vista até muito longe, até aos limites do Campo de Concentração”, e contrapor com os relatos nos jornais da época.




Notícia sobre o Campo de Concentração dos Flagelados, publicada no Jornal O POVO, em 16/04/1932. Material disponível no museu de imagens que trata da Grande Seca do Nordeste. Disponível em: <http://www.museudeimagens.com.br/grande-seca-do-nordeste/>


Buscar compreender a realidade vivida através da literatura pode ser uma forma de inserir os sujeitos em suas próprias histórias de forma lúdica, promovendo debates pós-leituras e investigando para elucidar o momento histórico. Em “Vidas Secas”, um trecho bem peculiar levanta a invisibilidade da personagem Fabiano: “Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em questões e acabar mal a noite. Soprava e esforçava-se inutilmente por abanar-se, estava amarrado.” (RAMOS, 1971, p. 116).


Por que os “Fabianos” são invisíveis? Na nossa História, enquanto sociedade, negligenciar o povo pobre é uma praxe. No entanto, no período narrado nas obras, essa camada da sociedade era mais do que esquecida, era temida. Temida em razão da fome que sentiam. Era política de estado mandar os flagelados da seca para outros estados e os colocar à disposição dos fazendeiros sem se importar com os seus destinos, separar as famílias e escolher os que estavam em melhor estado de saúde e físico.


Os livros aqui elencados trazem muito mais do que o lúdico. Em análise conjunta com a historiografia das migrações e secas, é possível perceber colocados ali os comportamentos sociais, as políticas públicas ou a falta delas. A transplantação de pessoas famintas para os estados do Norte e do Sudeste do país criou alguns imaginários que se solidificaram na sociedade. Ainda hoje, é possível perceber crenças que dão conta de que migrar para o Sudeste e para o Sul do país pode ser o único caminho para a evolução e crescimento financeiro, cultural, dentre outros. Esse pensamento estava posto, como mostra a historiadora Cristina Toledo de Carvalho.


Rumar para a capital paulista, numa época em que prevaleciam análises e estudos segundo os quais o Brasil se encontrava estruturalmente dividido entre “o atraso rural e o progresso urbano” significava para os migrantes “progredi, [...] gozar da civilização”.


O trecho acima corrobora o que as literaturas trazem: “Eu já tinha ouvido contar muita coisa boa de S. Paulo. Terra de dinheiro, de café, cheia de marinheiro...” (QUEIROZ); “É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina” (LISPECTOR); “E andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande cheia de pessoas fortes.” (RAMOS). A possibilidade de, naquele momento, serem mandados para os seringais do Amazonas, para as lavouras de São Paulo, ou para suas ruas, ou, ainda para a cidade do Rio de Janeiro, permitia que esses flagelados esperançassem a possibilidade de conseguir um trabalho e, minimamente, saciar a própria fome e a de seus entes queridos.


A fome está presente de novo na vida do brasileiro. Falar sobre esse tema me parece oportuno, mas especialmente necessário. A literatura nos dá ferramentas para discutirmos a cultura, a História, e a própria literatura. Ler é resistir.


*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP).


Referências:

CARVALHO, Cristina Toledo de. Migrantes Amparados: a atuação da Sociedade Beneficente Brasil Unido junto a nordestinos em São Caetano do Sul (1950-1965). São Caetano do Sul: Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul, 2015.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

QUEIROZ, Raquel de. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Livraria Martins Editora. 1971.

<https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU>





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