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A fake news que levou ao massacre de uma comunidade judaica


Rio de Janeiro, 01 de abril de 2023.

Alexandre Belmonte*




O caso da beatificação de Simão de Trento



Corre o ano de 1475. Estamos no limiar do Renascimento, e na província italiana de Arezzo acabava de nascer Michelangelo Buonarroti, em 6 de março. Mais ao norte, em Trento, o monge dominicano Bernardino da Feltre faz uma série de pregações antissemitas, alegando que os judeus eram inimigos do cristianismo, realizando rituais satânicos e utilizando-se de magia negra, com o único objetivo de conspirar e atentar contra os cristãos. Nessa ocasião ele também teria profetizado que uma grande tragédia ligada aos judeus locais aconteceria até a Páscoa. Menos de três semanas depois de sua visita, na quinta-feira santa, desapareceu o pequeno Simão, de dois anos, filho de um humilde casal de curtidores da cidade. Seu cadáver foi encontrado no domingo de Páscoa próximo à sinagoga e casa de um dos judeus da pequena comunidade judaica de Trento. O trágico evento desencadeou a comoção e a fúria da população, que prontamente acusou os judeus de assassinato ritual. As pregações de Bernardino da Feltre aumentaram ainda mais a hostilidade contra os judeus e tiveram grande peso na condenação de Samuel, Tobias, Ângelo e outros judeus da cidade, que foram presos e interrogados durante meses, até confessarem o crime, sob tortura.




Crédito da imagem: Wikipedia.


Durante a Idade Média, Trento floresceu como um importante centro comercial e cultural, um principado episcopal com relativa autonomia, situado em uma rota estratégica que conectava o ducado de Milão, o marquesado de Mântova e a Sereníssima República de Veneza aos domínios Habsburgos do norte. Trento era também morada para uma discreta comunidade judaica. Se já era complexo ser judeu e manter-se judeu em reinos e ducados ao redor, muito mais difícil era ser judeu num principado episcopal liderado por um dos grandes antissemitas da época, o príncipe-bispo Giovanni Hinderbach. As tensões entre judeus e cristãos eram comuns, e o antissemitismo resultou em inúmeros episódios de acusação, perseguição, violência e massacre aos judeus, como durante as Cruzadas, e no contexto da peste bubônica entre 1343 e 1351.


Em Trento, as tensões entre judeus e cristãos eram particularmente elevadas no final do século XV. Em seus inflamados sermões contra os judeus, durante a visita a Trento na Quaresma, Frei Bernardino teria profetizado que, antes da Páscoa, seria descoberto um ato de tremenda maldade cometido pelos judeus. A hostilidade contra esses foi amplamente fomentada por alguns segmentos da igreja católica, como os próprios franciscanos, que se opunham ao sistema prestamista judaico e promoviam a instituição dos Monti di Pietà[1].




Crédito da imagem: Wikipedia.


O processo contra os judeus de Trento, bem como uma profusa literatura sobre o tema, nos contam que, à medida que desaparece o menino Simão, vários boatos se espalham pela cidade. Alguém chega a afirmar tê-lo visto pela última vez próximo à casa de Samuel, que supostamente era o líder da pequena comunidade de judeus, dirigindo a sinagoga anexa. Os rumores rapidamente se propagaram, e em pouco tempo toda a comunidade judaica de Trento, formada por menos de 30 pessoas, é acusada de sacrificar ritualmente o menino e usar seu sangue para fazer a matzá de Pessach, o pão ázimo da páscoa judaica.


Os autos do processo mostram que dois réus solicitaram o batismo, depois de terem confessado o crime sob tortura, mas mesmo assim foram condenados à decapitação e queima do cadáver. A sentença foi executada em 23 de junho de 1475. Surpreende o tempo excessivamente curto – menos de noventa dias – no qual transcorreu o processo, que começou com uma acusação e prisão sem provas, levou os acusados ao interrogatório e à tortura, e finalmente à bárbara execução. Antes que suas cinzas fossem lançadas ao rio Ádige, houve um verdadeiro espetáculo de horrores em praça pública, que ao longo de todo o processo incluiu dilaceramento, esquartejamento, decapitação, cortejo de cadáveres arrastados por cavalos e fogueira. Prática antissemita comum e antiga, já transformada em lei em muitas cidades europeias, procedeu-se imediatamente ao confisco dos bens e propriedades dos condenados.



Crédito da imagem: Wikipedia.


Conclui-se a partir da perícia do cadáver que a criança que a criança havia sido morta em algum ritual. As pessoas acorrem para ver o corpo, estão convencidas de que o menino morreu não por afogamento, mas por feridas infligidas num macabro sacrifício ritual, que a voz do povo atribuía aos judeus. Deposto o corpo do menino na Igreja de San Pietro, com toda a população comparecendo para velar seu corpo, rumores de milagres passam rapidamente a circular, sustentando a tese do martírio sofrido pela criança. Uma rede de boatos e falsas acusações é rapidamente tecida, sobre uma tela onde não faltavam desconfianças e animosidades seculares entre cristãos e judeus. As comunidades judaicas de Roma, Veneza, Mântova e outras cidades mantinham-se em alerta, ao mesmo tempo que cobravam justiça das autoridades eclesiásticas.


Seguindo a execução dos dois primeiros, outros oito judeus são mortos na fogueira, e é queimado o corpo de outro judeu que morrera após as torturas na prisão. Durante dez meses, até janeiro do ano sucessivo, enquanto a comunidade judaica fora de Trento inutilmente designava advogados e tentava dialogar com setores da igreja, inclusive ligados diretamente ao Papa, mais cinco judeus seriam queimados vivos em praça pública. Após a execução dos acusados, os que sobreviveram foram expulsos, e até o século XVIII estiveram impedidos de sequer atravessar o Principado Episcopal de Trento. Em contrapartida, as comunidades judaicas em muitos lugares emitiram uma espécie de cherem[2] contra Trento, proibindo os judeus de estabelecerem relações comerciais no lugar. Pelas leis haláchicas do judaísmo, cherem é uma declaração formal de excomunhão, usada em casos graves, quando uma pessoa ou grupo viola seriamente as leis judaicas ou coloca em risco a integridade da comunidade. A comunidade judaica de Veneza emitiu um cherem contra Trento em 1476, declarando que nenhum judeu da comunidade deveria ter relações comerciais ou sociais com a cidade de Trento. Outras comunidades judaicas emitiram cherem semelhantes, embora nem todas tenham sido amplamente seguidas.


O culto de devoção a Simão ganha vida rapidamente, acompanhando o início do processo inquisitorial. A tortura determinou os resultados: finalmente, eram os judeus os responsáveis, e o motivo era o ódio anticristão. Alguns depoimentos obtidos sob tortura narram um comércio de sangue de crianças cristãs pelo mundo judaico, que envolvia redes internacionais. O príncipe-episcopal Johannes Hinderbach estava convencido da culpa dos judeus, embora de Innsbruck e sobretudo de Roma cheguem dúvidas e pedidos de esclarecimento sobre os métodos usados na investigação, sobre as torturas ​​e a fabricação do culto ao menino. Os afrescos de Spoleto, as pinturas e esculturas realizadas em torno do tema pelo norte e a devoção a São Simão na Alemanha e Áustria até o século XX, mostram que o culto espalhou-se rapidamente, num processo que acabou levando o Papa a reconhecer a santidade do menino, transformado em mártir e beato.


Por outro lado, o processo também levou a uma série de movimentos de resistência entre a comunidade judaica em diáspora. Em 1516, o bairro judaico de Veneza foi estabelecido como o primeiro gueto judaico da Europa, mais uma forma de isolar a os judeus e impedir seu contato com o restante da população. Isso permitiu aos judeus a manutenção de suas tradições e costumes, mas também restringiu sobremaneira sua liberdade e acesso a recursos. Ao passo que se desenvolvia o marranismo e o criptojudaísmo, como estratégias de sobrevivência em meio hostis, se conservava a leitura familiar da Torá, dos talmudim, midrashim e escritos rabínicos.


Em 2007, o professor e pesquisador ítalo-israelense Ariel Toaff publicou um livro intitulado Pasque di sangue: Ebrei d'Europa e omicidi rituali. Neste livro, ele aventa a possibilidade de em alguns momentos da história os judeus terem praticado crimes ritualísticos, indo na contramão das conclusões dos historiadores do século XX, para quem os assassinatos rituais atribuídos aos judeus eram completamente infundados, gerados pelo secular ódio e perseguição aos judeus. Toaff não acredita que o crime ritualístico tenha sido uma prática generalizada, mas que algumas comunidades ashkenazitas, assombradas pela memória dos massacres da época das Cruzadas e da Peste Negra, poderiam ter praticado esse tipo de crime como uma vingança. O alarde em torno de seu livro foi tamanho que foi publicada uma segunda edição em 2008, onde o autor faz uma retratação afirmando que os judeus não estiveram envolvidos no assassinato ritual, um estereótipo que era parte do imaginário cristão. Embora ele tenha concordado em mudar a ilustração da capa, o título provocativo permaneceu inalterado.


Uma das interdições fundamentais que determina grande parte da kashrut, a dieta alimentar contida na Bíblia, se refere ao consumo de sangue. A carne a ser consumida não pode conter nenhum vestígio de sangue. Os mesmos versículos influirão também na shechitá, ensinamento sobre como abater os animais, manipular, desossar, cortar sua carne. Nesse sentido, as acusações dos libelos de sangue, todas confessadas sob tortura, soam como verdadeiros absurdos do ponto de vista teológico. O pai de Ariel Toaff fora rabino do Grande Templo de Roma, e a comunidade judaica mais ligada a assuntos religiosos recebeu o livro com protesto e indignação. Continua sendo um trabalho fundamental para se entender os diferentes universos culturais em jogo nas acusações de libelos de sangue contra os judeus.


O caso de Simão de Trento foi relembrado por Theodor Herzl quando escrevia O Estado judeu, livro basilar da história do sionismo, como um exemplo de como os judeus precisavam de um Estado próprio para garantir sua segurança e liberdade. Somente em 1965 o Vaticano revogou a beatificação de Simão de Trento. A Igreja reconheceu que a acusação de assassinato ritual era falsa, e que os judeus de Trento foram injustamente acusados e mortos. Desde então, uma série de eventos ecumênicos tem ocorrido, reunindo a igreja e a pequena comunidade judaica local, já que também foi revogado o cherem sobre Trento em 1965, e em 2011 foi reativada a sinagoga. O caso continua a ser um exemplo de como se pode manipular a opinião pública, através de discursos religiosos como os de Frei Bernardino da Feltre, levando-a a exigir punições tão injustas e infames como as que foram perpetradas aos judeus de Trento.



Bibliografia:

CALIMANI, Riccardo. Il caso Simonino di Trento. Milano: Rizzoli, 1978.

GARCÍA-ARENAL, Mercedes. "El caso Simón de Trento: orígenes, desarrollo y consecuencias." In Judíos y conversos en la España moderna, editado por Mercedes García-Arenal e Fernando Rodríguez Mediano, 283-302. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1990.

HSIA, R. Po-Chia. "The Simon of Trent Affair (1475)." In The Blackwell Companion to the Reformation World, editado por R. Po-Chia Hsia, 397-409. Malden, MA: Wiley-Blackwell, 2004.

MARTÍN, José Luis. "El proceso a los judíos de Trento (1475) y su contexto histórico." In Los judíos y la Edad Media, edited by Ángel Alcalá, 91-114. Madrid: Ediciones del Laberinto, 1995.

ROTH, Cecil. The Ritual Murder Libel and the Jew: The Report by Cardinal Lorenzo Ganganelli (later Pope Clement XIV). New York: Ktav Pub. House, 1935.

SEGRE, Renzo. Il caso Simonino. Torino: Einaudi, 1982.

TOAFF, Ariel. Pasque di sangue: Ebrei d'Europa e omicidi rituali. Milano: Il Giornale, 2007.

TRIGANO, Shmuel. Le procès de Trente: Juifs et chrétiens dans l'Italie de la Renaissance. Paris: Éditions Albin Michel, 1990.

WEINZIERL, Erika. "Der Fall Simon von Trient: Zur Geschichte eines Märtyrerkultes." In Christliche Ikonographie im Ostalpenraum, editado por Gerhard Lutz and Gernot Peter Obersteiner, 139-150. Graz: Akademische Druck- und Verlagsanstalt, 2001.

WOLFRAM, Herwig. Die Juden in Deutschland vom 16. bis zum 18. Jahrhundert. München: C.H. Beck, 2002.

[1] Muzzarelli, M.G., Il bilancio storiografico sui Monti di Pietà. 1956-1976, in Rivista di Storia della Chiesa in Italia, XXXIII(1979), pp. 165-183 [2] A pronúncia do ch é gutural como no alemão, quase como o dígrafo rr em português.


*Alexandre Belmonte é professor de História (UERJ).

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