André Sena*
Toronto, 01 de março de 2022.
Minha admiração por pintura histórica vem crescendo na velocidade daqueles hobbies que desenvolvemos de repente e não conseguimos mais nos livrar deles. No meu caso já faz alguns anos em que venho namorando pintores como Meirelles, Américo, Leutzer, David, Delacroix, Gerasimov, Trumbull, Von Stock. Todos estes nomes pintaram quadros que retratavam de forma clássica, idealizada e até mesmo heróica, cenas ou fatos históricos de seus respectivos países.
Crédito: Heritage Florida Jewish News.
Quadros célebres como “A Liberdade Guiando o Povo”, “Napoleão Cruzando os Alpes“, “A Primeira Missa do Brasil“, “Washington cruzando o Delaware” são obras de arte que despertam em mim imensa emoção, especialmente por todos os bastidores que envolvem não apenas a sua concepção, mas o momento histórico em que foram construídas, o que não corresponde necessariamente ao motif de seus quadros. Quem as encomendou? Por que foram pintadas? A que tipo de projeto político serviram? Um mistério que se esboroa na beleza das cores e pinceladas perfeitas, no equilíbrio das formas.
Entretanto isto toma um vulto muito mais complexo e delicado quando pintores e artistas plásticos buscam retratar tragédias. Mais do que simplesmente produzir arte, é um discurso que se prepara com suas obras, muitas vezes de denúncia acerca da estupidez humana, outras tantas apenas um caminho para escapar do chão duro e insuportável de certas realidades. É o que vemos por exemplo nas xilogravuras da artista plástica alemã Käthe Kolwitz que denuncia as agruras da Primeira Guerra Mundial em cada um de seus desenhos.
Judith Dazzio é uma destas artistas e por razões óbvias eu venho admirando sua pintura desde que desenvolvi meu hobby, como disse antes. Ela não se enquadra na lista de pintores históricos acima, porque pinta na verdade o fim da História; seu esgotamento, sua decadência como projeto do homem no tempo e no espaço. Ela pinta a Shoah, nome que hoje a maioria dos estudiosos de genocídios do século XX usa para nomear o que conhecíamos mais familiarmente como o Holocausto nazista.
Crédito: Heritage Florida Jewish News.
Quando contemplo a obra desta incrível pintora me pergunto como foi possível. E não me refiro a como foi possível a Shoah, mas a como foi possível pintar esse tema? De onde ela tirou forças? De quais recursos psíquicos ela lançou mão para trazer beleza e cor ao horrendo, tosco e indizível? Como conseguiu organizar a Shoah em traços pictóricos, em cores, em contornos?
Judith Dazzio me leva sempre a pensar em um dos maiores intelectuais judeus do século XX: o pensador italiano Primo Levi, autor da obra literária A Trégua . Ao chegar como prisioneiro ao campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, Levi, sedento por água, agarra em uma mesa um copo para aliviar sua angústia. Imediatamente um oficial nazista lhe agride aos socos e lança o copo fora de seu alcance. Ele se esforça para fazer uma pergunta na língua alemã ao soldado: Warum? (Por quê?) O soldado sorri e lhe responde o que para Levi foi a explicação mais racional da Shoah: “hier ist kein Warum! (Aqui não há “porquês!”)
Como pintar algo onde os porquês são uma impossibilidade?
Judith Dazzio conseguiu. Não porque tenha desejado o lazer do retrato, do desenho, da figura. Mas porque inseriu a ordem do necessário naquilo que mais sabe fazer, pintar. Muitos de seus desenhos se originam de testemunhos de sobreviventes do Holocausto, o que dá à sua arte um tom de expressionismo e de realismo ao mesmo tempo. Vozes de sobreviventes são fontes primárias da beleza de seus traços em cores. Cores da morte, mas ainda assim, cores.
*André Sena é historiador (UERJ).
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