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  • Foto do escritorLuciene Carris

A atualidade de um clássico: A bolsa Amarela

Rio de Janeiro, 08 de agosto de 2022.

Luciene Carris*


Na maioria das vezes quando me sinto paralisada na leitura de um determinado livro ou na escrita de algum trabalho, me recordo do primeiro livro que eu li, ou talvez, algum que tenha marcado a minha juventude. Recentemente, a escrita tem se tornado algo complexo, quase um fardo. É bem verdade que o momento político atual tem me causado uma certa paralisia, quase uma depressão cívica, e ainda, aqui, incluo outras situações de ordem pessoal, interna, quase que "holística". Não por acaso me veio à cabeça o livro da escritora Lygia Bojunga Nunes, intitulado de A bolsa amarela.



Crédito: Amazon.


Para quem não leu a autora, vale a pena conhecer, bem como apresentar a sua literatura aos jovens leitores e leitoras. Nascida em 1932, a escritora gaúcha escreveu diversos livros infantis, e recebeu o Prêmio Hans Christian Anderson, em 1982, o mais importante prêmio literário da literatura infanto-juvenil, concedido pela International Board on Book for Young People, filiada à UNESCO. A sua estreia no universo infanto-juvenil ocorreu em 1971, quando escreveu o livro Os Colegas, o qual foi devidamente premiado no Concurso de Literatura Infantil do Instituto Nacional do Livro, obra, aliás, que seria publicada no ano seguinte. Logo em seguida, publicou Angélica (1975), A Bolsa Amarela (1976), A Casa da Madrinha (1978), Corda Bamba (1979) e o Sofá Estampado (1980). Mas não parou por aí, seguiu com outras obras, bem como recebeu outras importantes premiações, além disso, fundou uma editora e criou, em 2006, a Fundação Cultura Casa Lygia Bojunga em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, com intuito de estimular a popularização do livro no Brasil.


Parei para lembrar o real motivo daquela imagem de um livro lido, lá pelos idos de 1980, ainda permanecer guardado na minha memória. Primeiro, o livro foi publicado no ano em que nasci, em 1976. Depois, a capa curiosa, um singelo desenho de uma bolsa amarela, poderia ter sido desenhado por alguma outra criança como eu naquela época. Mas e a história?


O Brasil atravessava o tenebroso momento de ditadura civil-militar, e como ela mesmo argumentou “os generais não liam livros destinados a crianças e adolescentes”. Através de uma curiosa narrativa uniu realidade e fantasia ao discorrer com humor a história da nossa personagem principal, a nossa heroína, a Raquel, a filha caçula de uma grande família. Ignorada pelos irmãos, desacreditada pelos pais, a menina criou amigos imaginários, e com eles compartilhava os seus desejos: ser menino, crescer rapidamente e ser escritora. Mas, aí ganhou a tal da bolsa amarela, que logo se tornou o refúgio das suas vontades e invenções.


Eu tenho que achar um lugar pra esconder as minhas vontades. Não digo vontade magra, pequenininha, que nem tomar sorvete a toda hora, dar sumiço da aula de matemática, comprar um sapato novo que eu não aguento mais o meu. Vontade assim todo o mundo pode ver, não tô ligando a mínima. Mas as outras - as três que de repente vão crescendo e engordando toda a vida - ah - essas eu não quero mais mostrar. De jeito nenhum. Nem sei qual das três me enrola mais. Às vezes acho que é a vontade de crescer de uma vez e deixar de ser criança. Outra hora acho que é a vontade de ter nascido garoto em vez de menina. Mas hoje tô achando que é a vontade de escrever. Já fiz tudo pra me livrar delas. Adiantou? Hmm! é só me distrair um pouco e uma aparece logo. Ontem mesmo eu tava jantando e de repente pensei: puxa vida, falta tanto ano pra eu ser grande. Pronto: a vontade de crescer desatou a engordar, tive que sair correndo pra ninguém ver.


A problemática colocada pela escritora se inseria com propriedade na dinâmica das lutas daquela década pela igualdade de gênero e racial, bem como sobre os questionamentos da tradicional sociedade patriarcal e o lugar da mulher nos espaços público e privado. Outros pontos revelados são a discriminação etária, a exclusão familiar e a liberdade de expressão. Desse modo, caberia a mulher o direito à escrita, a uma atividade criadora? Ao longo da narrativa, a nossa protagonista, uma menina sonhadora e afetiva, vai aprendendo a lidar com as diversas situações inusitadas que contribuem com a busca pela sua identidade, pela aceitação e autoafirmação como menina/mulher.


Pouco a pouco, a bolsa amarela da Rachel foi se esvaziando, o deslocamento do sentimento de angústia e o entendimento de que o problema não era ela ser menina e criança. Na verdade, a compreensão de que era oprimida/silenciada, pelas ações e pelos discursos daqueles que estavam em sua volta, levou a uma transformação interna e a seguinte conclusão: “abri a bolsa amarela e tirei minha vontade de ser garoto e minha vontade de ser grande. Elas tinham emagrecido tanto que pareciam até de papel”. Sem dúvida, a narrativa ainda é bem contemporânea. A fantasia oferece ao jovem leitor ou leitora várias reflexões sobre a complexidade humana e das relações entre os indivíduos. Daí a importância da literatura, fomentar a apreensão sobre mundo e de si, bem como abre a possibilidade de compreender a diversidade humana, a tolerância e a alteridade. A literatura liberta.


"A bolsa amarela tava vazia à beça. Tão leve. E eu também, gozado, eu também estava me sentindo um bocado leve."


Referências:

BOJUNGA, Lygia. A bolsa amarela. Rio de Janeiro: Agir, 1976.

CRISTÓFANO, Sirlene. O discurso feminino em A bolsa Amarela: a busca pela libertação da mulher. REEL – Revista Eletrônica de Estudos Literários, Vitória, s. 2, ano 7, n. 9, 2011.

Casa Lygia Bojunga. Disponível em: https://casalygiabojunga.com.br/a-fundacao/ Acesso em: 08 ago. 2022.

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