Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2022.
Carlos Eduardo Pinto de Pinto*
Há alguns dias assisti a uma vinheta produzida pela Rede Globo em 1988 homenageando os cem anos do fim da escravidão. No vídeo, um grupo numeroso de pessoas negras, sobretudo cantores e atores, entoa a letra “Axé, Axé, Axé pra tudo mundo, Axé!”. Entre os atores com mais destaque, estão Ruth de Souza, Grande Otelo, Milton Gonçalves, Antônio Pitanga e o então adolescente Fernando Almeida. Assim que o vi, me lembrei de Vale Tudo, o grande sucesso de audiência da Rede Globo, que estreou em 1988 e, no ano seguinte, mobilizaria o país com o clássico Quem matou Odete Roitman? Em contraste com as imagens da vinheta, que evidencia a existência de uma quantidade considerável de artistas negros em atividade nos anos 1980, a novela contava apenas com dois atores negros num elenco bastante extenso. Além de Fernando, havia Zeni Pereira, intérprete de Zezé, a personagem que foi expulsa da cozinha.
A atriz Zeni Pereira no papel de Zezé na novela Vale tudo.
Disponível em: encurtador.com.br/cGPXY. Acesso em: 15 dez. 2022.
Antes de chegar ao cerne deste caso exemplar de racismo na TV, vou contar um pouco da minha relação com a novela. Na época de sua primeira exibição, eu tinha 11 anos e acompanhei a trama entusiasmado com as manobras melodramáticas criadas pelo trio de autores encabeçado por Gilberto Braga. Torci pela protagonista Raquel Acioly e sua “ética protestante capitalista”, ganhando dinheiro com trabalho honesto contra a vontade da filha, Maria de Fátima, nora e parceira de Odete Roitman, ambas ricas, antiéticas, esnobes – enfim, vilãs. Mais recentemente, tive a curiosidade de rever a novela pela Globoplay e, com o senso crítico aguçado, me surpreendi, entre outras coisas, com as evidências gritantes de racismo estrutural.
Segundo Silvio de Almeida (2018, p. 51), o racismo estrutural é aquele que está entranhado na estrutura social a ponto de ser naturalizado, constituindo “um complexo imaginário social que a todo momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional”. Dando-nos um exemplo de como o racismo estrutural opera, ele registra que “após anos vendo telenovelas brasileiras, um indivíduo vai acabar se convencendo que mulheres negras têm uma vocação natural para o emprego doméstico (...)”.
Neste sentido, Vale tudo não decepciona. Zezé é justamente uma empregada doméstica – “praticamente da família” – bem-humorada e afetuosa, que se destaca como uma cozinheira exemplar. A partir de dado momento da estória, o outro personagem negro – Gildo, o rapaz interpretado por Fernando Almeida –, é “adotado” por ela depois de escapar do mundo do crime. Ainda que a trama se passe nos anos 1980, a personagem se assemelha ao estereótipo da mãe preta, “produto de sociedades escravistas em que os filhos dos senhores eram amamentados por amas-de-leite negras” (STAM, 2008, p. 457). Como pontuou Lélia Gonzales (2018, p. 199), “quanto à empregada doméstica, ela nada mais é do que a mucama permitida (...)”. Seguindo no campo da analogia com a estrutura escravista, Zezé não apenas alimenta os filhos dos senhores, como também as outras crianças da “senzala”, já que Gildo, incialmente sem qualquer conexão com ela, é acolhido como um filho. Cabe mencionar, aliás, que as mães pretas (escravizadas ou livres) foram constantes na carreira televisiva da atriz, que iniciou sua trajetória nos anos 1940 no Teatro Experimental do Negro.
Fernando Almeida (com o microfone) em frame da vinheta Axé.
Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=419454698555120. Acesso em: 15 dez. 2022.
Mas, afinal, por que Zezé foi expulsa da cozinha em Vale Tudo? Embora não disponha de fontes para afirmar, tudo leva a crer que a resposta está relacionada com merchandising. Desde suas primeiras aparições, a personagem estava na beira do fogão preparando refeições para a família de Eunice, interpretada por Íris Bruzzi, uma dona de casa branca. Todos os personagens do núcleo eram unânimes em elogiar seus quitutes. Com o sucesso de audiência, alguns anúncios comerciais passaram a ser inseridos nas cenas da novela, inclusive neste núcleo familiar. Neste ponto, Eunice começa a ser vista manipulando as panelas e elogiando indisfarçadamente um caldo de carne, um molho de tomate ou um creme de leite. Por outro lado, Zezé – até então a única a cozinhar para a família –, só aparece lavando louça ou conversando com a patroa.
A troca de posições entre a empregada negra e a patroa branca é explícita demais para ser apenas coincidência. Tenho três hipóteses complementares, todas associadas ao racismo estrutural. A primeira é uma possível ojeriza que o contato das mãos negras com a comida poderia causar em parte do público, em um processo semelhante ao narrado por André Sena aqui no Box Digital de Humanidades, em O racismo que se aprende em casa. É plausível que as habilidades culinárias de Zezé fossem consideradas inofensivas enquanto seus pratos eram direcionados aos outros personagens, mas tenham sido rejeitadas pelos anunciantes com receio de associar seus produtos à uma mulher negra. A segunda hipótese é que o público alvo do merchandising fossem donas de casa brancas e o temor, neste caso, seria que a empregada negra não gerasse empatia. A terceira hipótese diz respeito às diferenças salariais quando em cena gênero e raça. Uma mulher negra tende a receber menos do que uma mulher branca em mesma função, por exemplo. Nesse sentido, pode-se pensar que a estrutura racista tenha privilegiado o encaminhamento dos royalties pela propaganda inserida na novela para uma atriz branca (CARNEIRO, 2011).
Em comentário sobre uma pesquisa de mercado envolvendo pessoas negras, brancas e orientais, em que se demonstrou que os negros não eram vistos como consumidores ideais, Sueli Carneiro (2011, p. 169) sintetiza:
(...) a possibilidade de contágio daqueles espaços e daqueles produtos, pelo estigma que envolve o negro, representa ônus superior à perda desse consumidor. O bem superior que se pretende preservar é a identidade daqueles espaços e produtos como um ideal de ego dos clientes, de pertencimento a um grupo de privilegiados, seres superiores, detentores do direito às melhores coisas do mundo.
É provável que a mesma lógica racista de consumo tenha sido mobilizada nas campanhas publicitárias da novela, fazendo com que a patroa branca, até então liberada dos trabalhos manuais pesados – ainda que fosse uma administradora do lar – precisasse ocupar o lugar da empregada negra, considerada uma “ameaça” à identificação com o público.
Importante pontuar, contudo, que o mercado nem sempre seguiu a mesma linha, já que Zeni Pereira foi escalada para fazer a campanha de uma revista de culinária da Editora Globo. Resta saber o que pauta a diferença de tratamento da atriz/personagem nas duas situações. A vontade dos anunciantes? A resposta do público? A política interna de marketing da Rede Globo? Ainda que faltem dados para uma resposta precisa, não há dúvida de que a dinâmica que rege tais escolhas é marcada pelo racismo estrutural da TV brasileira, mesmo quando se celebrava a cultura afro-brasileira e o centenário do fim da escravidão. Neste sentido, a vinheta festejando a Abolição corresponde ao discurso politicamente correto, que parecia adequado às pressões do contexto. Já Vale Tudo, produzida no mesmo ano, torna evidente o que acontecia quando a consciência crítica não estava vigilante.
Referências:
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: ______. Primavera para as rosas negras. Diáspora africana: Editora Filhos da África, 2018.
STAM, Robert. Multiculturalismo tropical: uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
*Carlos Eduardo Pinto de Pinto é professor de História da UERJ.
Excelente artigo, professor Carlos Eduardo!! Além de nos provocar afetivamente, nos faz racionalizar e perceber com clareza a força que mantém o racismo estrutural está arraigado na sociedade brasileira.