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  • Foto do escritorAndré Sena

O racismo que se aprende em casa


Toronto, 01 de dezembro de 2022.

André Sena*


Aprendi com a historiadora Lúcia Maria Paschoal Guimarães, ainda na graduação em História nos anos 1990, o termo/conceito “círculos de sociabilidade (s)”. As aulas da disciplina obrigatória de Historiografia II ainda hoje ecoam na minha memória, e muito do que sou e penso como historiador obtive naquelas salas da UERJ, com ela. Ali compreendi a dinâmica concêntrica e sempre dialética entre as diversas camadas das relações entre pessoas, grupos, comunidades, sociedades e até mesmo civilizações. A família aparecia como um elemento inicial nesse processo, mas não necessariamente como o único dotado de real importância.




Crédito da imagem: Mesa e Sabor.


Lúcia Guimarães sempre expandiu os limites das disciplinas de Historiografia (eu a teria depois como professora no mesmo campo, tanto em meu mestrado, como em meu doutorado com o curso Tendências da Historiografia Contemporânea); o diálogo com categorias de análise da Sociologia e da Antropologia sempre apareceram em suas falas em sala de aula, o que se mostrava ao mesmo tempo fascinante e complexo.


Foi também com ela que conheci ainda jovem a obra Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. No quinto capítulo deste clássico da historiografia brasileira, intitulado “O Homem Cordial”, aprendi com o pai de Chico Buarque os desafios da sociedade brasileira em estabelecer uma clara diferença entre aspectos da vida pública e privada, tendo como raiz da questão exatamente a relação promíscua entre a perspectiva familiar, sempre intimista e aproximadora, com a esfera civil e comunitária, onde os interesses (e as representações) particulares e privadas não deveriam prevalecer.


Meu círculo de sociabilidade inicial foi desde o início excessivamente poluente. Fui criado em uma família profundamente racista. Racismo que sempre oscilou entre o disfarce e o escancaramento. Especialmente na minha família materna isso sempre foi e ainda é muito claro, mesmo depois de anos de distanciamento, em função de outro grave flagelo, frequentemente pertinente ao que hoje muitos brasileiros insistem em chamar de ‘família tradicional’: a homofobia familiar. Naturalmente onde há racismo, há homofobia. O banimento sutil, mas certeiro das festas familiares ocorreu comigo depois do meu casamento há quase 14 anos atrás. Casado com o Fábio, minha orientação sexual passou a ser tão escancarada quanto o racismo e a homofobia que sempre experimentei em minha família. Meu marido, além de obviamente gay, também é negro.


Meus pais aprenderam o racismo com meus avós. Minha mãe sempre relatou que quando criança, meu avô reunia a família para o jantar e com muita frequência instruía seus nove filhos de que algumas coisas não seriam nunca toleradas. A lista de proibitivos era encabeçada pela interdição ao casamento com negros, o que era reforçado especialmente às meninas. Obedientes, todas elas se casaram com homens pardos o suficiente para que meu avô não chiasse. Já meus tios foram avassaladoramente rebeldes: todos, sem exceção se casaram com mulheres negras, com o benefício de um deles ter tido dois maridos: ambos negros retintos e lindíssimos.


Isso não impediu a continuidade do legado racista entranhado em meu seio familiar tradicional. As filhas de meus tios homens, paridas por mulheres negras, foram por anos apontadas sistematicamente nos churrascos de família como portadoras de cabelo ruim. A pressão pelo alisamento capilar era clara e muitas vezes esse processo acontecia na nossa frente. Nenhuma das mulheres dos meus tios eram consideradas pessoas confiáveis pelo resto da família e não me resta dúvida de que a cor de suas peles desempenhou um papel muito ativo nesse veredito. Já os homens, todos pardos, casados com minhas tias, eram absolutamente incólumes a qualquer crítica. Naturalmente fui exposto a tudo isso como qualquer criança, e a pedagogia familiar do racismo exerceu sobre mim o efeito nefasto de todo processo infantil de absorção.


Um episódio de minha infância particularmente me marcou, algo que viveria, da outra margem do rio, já adulto, muitos anos depois. Certa vez, lá pela idade de nove para dez anos encontrava-me na casa de uma de minhas tias maternas, juntamente com outros membros da família presentes. Minha tia tinha uma vizinha negra, com quem mantinha uma relação bastante próxima, porque nem tudo é preto no branco em uma sociedade racista e complexa como a brasileira, onde virtualmente quase nenhum branco ou pardo se assume como tal. Sim, minha tia, que ouvira as proibições racistas sistemáticas de meu avô, que também fora exposta ao racismo, não apenas tinha cunhadas negras com quem mantinha uma ambígua relação de amor e ódio como travou com Angélica uma amizade de anos.


Pois neste dia em que lá me encontrava, minha tia chegou com doces e quitutes feitos por Angélica e mandados por ela para o nosso deleite. Eu não apenas amava o que ela fazia, como tinha sido amamentado por ela quando bebezinho, em função de minha mãe não ter gerado leite materno. Porém dessa vez algo mudou. Quando minha tia chegou com os quitutes, reparei que seu irmão, meu tio, os recusou. Nunca tinha percebido isso, mas ele exclamou:


- Você sabe que não como nada que é feito por ela. Não consigo, sinto nojo.


A partir daquele dia nunca mais comi nada que viesse da casa de Angélica. Me dava ânsias de vômito automaticamente. Até ir em sua casa passou a me enjoar. Naturalmente, como criança, minha capacidade de elaboração deste meu comportamento era mínima. Meu corpo, minha psiquê, mimetizaram imediatamente o comportamento do meu tio, sem que eu soubesse exatamente o porquê. Até que anos se passaram e eu finalmente compreendi do que se tratava: minha educação racista tinha sido perfeitamente bem-sucedida.


Soube disso anos depois, no início de 2019, antes de deixar o Brasil, 29 anos depois de ter ocorrido o episódio de meu tio com Angélica. Pouco antes de sairmos do país, houve um dia em que meu marido Fábio fez um bolo de chocolate para tomarmos com café, em uma casa onde se encontravam outras pessoas, dentre elas um renomado intelectual, muito celebrado como progressista e prafrentex (tenho pavor de gente prafrentex!). Fábio preparou os pratos, servimos juntos o café e ele colocou o bolo à mesa. Foi quando algo curioso se passou: o convidado, que acabo de descrever, recusou o bolo feito pelo Fábio, com uma expressão facial que reconheci de algum lugar. Algo naquele jeito de recusar o bolo me soava familiar, mas não conseguia decifrar de onde, até o momento em que sua namorada, sem compreender muito bem o que ocorria exclamou, sem qualquer filtro:


- Mas por que você não quer o bolo do Fábio? Está com uma cara ótima!


Ao que a pessoa em questão respondeu, tenso e desconcertado:


- eu não gosto de bolo.


Foi, pois, a insistência da namorada que definitivamente descortinou minha memória. Ainda ingênua, ela rebateu:


- Desde quando você não gosta de bolos? Você adora bolos!


O silêncio do recusante foi acompanhado por um olhar na direção da namorada que definitivamente interrompeu a conversa.


Foi como se eu tivesse voltado no tempo. Imediatamente me lembrei daquele dia, três décadas antes, em que meu tio recusou, com a mesmíssima expressão facial, os quitutes de Angélica, plantando em mim mais uma de tantas sementes do racismo, e fazendo com que eu mesmo aderisse ao hábito de jamais comer qualquer coisa que viesse de sua casa, por mais deliciosa que parecesse, exatamente como o bolo do meu marido parecia delicioso aos olhos de todos, mas suas mãos pretas o tornavam incomestível para pelo menos um dos convidados a mesa. Naquele momento rompi imediatamente relações com o tal intelectual, a quem eu mesmo muito respeitara por anos. Lecionou para mim. Mas era tarde. O que eu havia feito a Angélica, em cumplicidade com meu tio, ou seguindo seus passos, agora era feito ao amor da minha vida, por quem mato e morro. Matei a amizade, morri de desgosto.


E entendi naquele dia, que o racismo pode ser aprendido de diversas maneiras, mas é na família onde ele mais pode ser ensinado e enraizado. E de uma certa forma agradeci à vida, por mesmo depois de tantos anos, ter me dado mais essa lição.



REFERÊNCIAS:

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Companhia das Letras, 2015.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Anti-Racista. Companhia das Letras, 2019.

CAVALLERO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio da escola: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. Contexto, 2012.

NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Perspectiva, 2016.

*André Sena é historiador (UERJ).


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