Toronto, 01 de agosto de 2021.
André Sena.*
Pedro II, Giovanni Rossi e La Cecilia.
Quando assistimos as primeiras cenas do filme La Cecilia, do cineasta francês Jean-Louis Comolli, nos deparamos com um encontro entre dois homens, cuja ocorrência muitos historiadores e cientistas políticos duvidam: em 1888, um ano antes da monarquia ser derrubada por um golpe militar no Brasil, o imperador D. Pedro II, em viagem a Milão, teria dialogado com o pensador anarquista italiano Giovanni Rossi. O resultado da conversa teria sido a semente para o experimento de uma colônia anarquista de vida curta, mas grande originalidade, nas proximidades de Palmeiras, no Paraná.
Crédito da foto: IMDB.
O filme de Comolli foi lançado em 1975 e não seria a sua única criação cinematográfica sobre o anarquismo. Ainda viriam L’ombre rouge (1981) e finalmente Buenaventura Durruti, Anarquista (2000). O ator Massimo Foschi é quem interpreta o libertário italiano, que levará para o sul do Brasil o experimento social e político que persistiria entre os anos de 1890 e 1894. O encontro entre os dois é breve e pode ter retratado um dos últimos momentos da viagem que o imperador iniciara em 1887, a sua última como chefe de Estado brasileiro.
Os estudos históricos são particularmente fascinantes porque nos colocam sempre diante de um paradoxo metodológico: a concretude dos fatos e a incerteza das narrativas. Os primeiros nos garantem que estamos escrevendo ou estudando sobre algo que efetivamente aconteceu. Já as incertezas que rondam as narrativas produzidas pelos historiadores, nos asseguram que o que efetivamente aconteceu pode não ter acontecido como desejamos acreditar, chegando inclusive à possibilidade da pura fantasia, da mitificação absoluta ou da invenção histórica.
Esse terreno de incertezas pode nos causar desconforto, ao mesmo tempo em que é a chave para a nossa curiosidade sobre o passado e o presente. Há quem defenda o encontro entre o imperador e o anarquista como um fato real, infelizmente nada documentado. Há quem diga tratar-se de uma invencionice. E há quem consiga, entre uma narrativa e outra, produzir um belíssimo filme sobre o tema, como nos presenteia Jean-Louis Comolli, ou uma genial obra literária, como fez Zélia Gattai em Anarquistas, Graças a Deus, que discute, dentre outras coisas, as ideias de seu pai, Ernesto Gattai, que viveu e atuou politicamente em La Cecilia.
O encontro entre o italiano Giovanni Rossi e o brasileiro Pedro de Bragança e Habsburgo teria sido promovido pelo grande compositor brasileiro, Carlos Gomes, o selvagem da ópera de Rubem Fonseca. O músico brasileiro era naquele momento bolsista do Império e pesquisador de música e composição na Itália. Lá apresentou-se, fez furor, e teve seu gênio reconhecido pelo público e pelos círculos de intelectuais e artistas que circulavam pela Europa, e tinham em Milão um de seus polos de encontro e reunião. O resultado concreto da entrevista com Pedro II foi a doação de alguns hectares de terra no sul do Brasil para a fundação de La Cecilia.
Crédito da foto: Brasiliana Fotográfica. Biblioteca Nacional
O que teria reunido essas duas cabeças é algo que definitivamente repousa no espírito intelectual da Belle Époque, que orquestrava sociabilidades, diálogos e trocas ideológicas, e que hoje, nesses tempos de polarização e radicalismo, nos parecem tão ridículas quanto impossíveis. Era então possível testemunhar a afinidade entre o imperador Luís Bonaparte, Napoleão III, e as ideias do socialista francês Saint-Simon (assim como sua participação ativa junto aos carbonários italianos e franceses), os flertes do Príncipe Albert de Saxe-Coburgo com os movimentos abolicionistas ingleses, e porque não, Pedro do Brasil e Giovanni Rossi, o Cardias italiano, com suas utopias realizáveis e sonhos de uma revolução nos trópicos.
As ideias de Rossi se expressam a partir do clássico manual socialista, anarquista e anarco-sindicalista de seu tempo. Podem ser encontradas especialmente em um conjunto de livros de sua autoria, que tem como título geral Uma Comuna Socialista, e foram publicados entre 1878 e 1891, quando o intelectual já organizava a La Cecilia no Brasil. Dentre seus pontos principais leremos nessas obras duras críticas à propriedade privada e ao modo de vida burguês, ao Estado liberal como modelo de governança, e à religião como processo dominador e atrofiador das potencialidades humanas. Há ainda provocações variadas acerca das relações de parentesco e de gênero, que culminavam em uma ácida contestação aos arranjos familiares tradicionais.
O interesse de Pedro II pelas ideias de Rossi pode ir além do espírito do tempo, como já descrito em parágrafos anteriores. A isto veio possivelmente somar-se um genuíno interesse do imperador tropical em experimentos sociais, que pudessem desencadear algum tipo de movimento dinâmico em uma sociedade ainda em formação como a brasileira. No filme de Comolli, Pedro II convida Rossi a experimentar suas ideias no Brasil “em paz”, o que sugere (ao menos no filme) que o monarca brasileiro entendia ser possível acomodar no Império culturas políticas de diversos matizes, em nome do desenvolvimento geral da sociedade brasileira. O encontro com Rossi deu-se no mesmo ano em que o Parlamento brasileiro decidia abolir a escravidão no país.
Crédito da foto: Acervo Arnoldo Monteiro Bach
Em 1890, a República recém proclamada teria revogado a doação das terras para La Cecilia, não reconhecendo a decisão imperial de 1888. Mesmo assim, por quatro anos a colônia funcionará como um laboratório libertário, atravessado tanto por grande vitalidade como por imensas dificuldades, que oscilaram entre várias tentativas de compra das terras para a garantia de sua posse, a falta de recursos materiais suficientes para a compra de material agrícola, a vinda de colonos da Itália para à colônia, e sua adaptação às diretivas anarquistas que modulavam o experimento, especialmente no campo das relações de gênero e moral sexual.
A desistência de algumas famílias e seu retorno a Itália foi como um golpe mortal sobre o paraíso anarquista de Giovani Rossi e La Cecilia desaparecerá para sempre em 1894. Muitos de seus membros tentarão a vida em cidades importantes da região, como Ponta Grossa, Palmeiras, Curitiba e São Paulo. Entretanto, a história desse enclave anarquista sul-americano despertaria a curiosidade de muitos pesquisadores no futuro. Não apenas por sua originalidade, mas pelo fato de que a história da formação social e política brasileira foi capaz de abrigar um conjunto de possibilidades tão diversas, mesmo com todos os problemas que o país enfrentou e ainda enfrenta. Real ou ficcional, o encontro entre o imperador e o anarquista poderá ser no mínimo a protofonia imaginária, de um acontecimento tão experimental quanto concreto, em um país complexo e desafiador como o nosso.
*André Sena é historiador (UERJ).
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