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  • Foto do escritorLuciene Carris

Vozes negras na academia: (Re)escrevendo as políticas do mundo daqui

Rio de Janeiro, 05 de agosto de 2023.

Luciene Carris*


Em 08 dezembro de 2022, foi publicado o livro Iselu Agbayê: 11 jovens vozes negras discutindo política e relações internacionais pela editora carioca Metanoia. O lançamento ocorreu na Biblioteca José Bonifácio, então instalada no Centro Cultural José Bonifácio, sede administrativa do Museu da Cultura e da Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB), que integra Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana. O edifício centenário onde está instalada a instituição remonta ao século XIX, quando em 1877 D. Pedro II inaugurou uma escola pública, que recebeu o nome de Escola da Freguesia de Santa Rita, em referência à antiga freguesia. Posteriormente, o local foi renomeado para Ginásio Estadual José Bonifácio, nome dado em homenagem ao “Patriarca da Independência” do Brasil, e funcionou até 1966. Alguns anos depois se converteu na Biblioteca Pública da Gamboa.



Acervo Pessoal.


Portanto, a escolha do local para o lançamento não foi um mero acaso, a região portuária do Valongo, foi o principal porto de entrada de africanos escravizados no Brasil e, também, das Américas. É uma lamentável página na história do nosso país. Acrescento que a minha decisão para escrever uma resenha sobre a coletânea para o Box Digital de Humanidades partiu de uma reflexão sobre um gentil convite realizado pela querida professora Lúcia Guimarães. O convite era para falar sobre o livro em um dos encontros acadêmicos da Comissão de Estudos e Pesquisas Históricas (CEPHAS), na instituição também centenária: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Uma entidade criada em 1838, que desempenhou um papel fundamental na escrita de uma história sobre o Brasil. Não foi a primeira participação no CEPHAS, mas certamente um das mais significativas. Neste sentido, o presente texto representa um trecho da fala que tive a oportunidade de realizar durante o evento, ao lado de Tainah Santos, uma das coautoras.


É bem verdade que quando recebi o convite do historiador e amigo longa data André Sena, também colaborador do Box, para participar como coorganizadora de uma obra com pesquisas de alunas e alunos negros sobre o tema da política e das relações internacionais, fiquei surpresa, mas no bom sentido. O primeiro, porque são poucas as obras e coletâneas publicadas por recém-formados, ou ainda, recém-mestres e recém-doutores, em nosso país, devido à falta de financiamento. Além disso, a divulgação e a circulação de obras também representam um ponto importante a ser considerado, o que leva a pouco reconhecimento ou visibilidade. Muitas pesquisas interessantes e originais continuam engavetadas, guardadas nos armários, acumulando o pó, empoeiradas, ou quando muito são publicadas em revistas acadêmicas, quando, assim, são aprovadas. Não foi o caso da coletânea em questão, cuja editora abraçou prontamente o projeto.



Registro do lançamento do livro com alguns dos autores e autoras.

Acervo particular.



Ainda é uma dificuldade para pesquisadores e pesquisadoras negros encontrar uma plataforma ou um espaço que seja inclusivo e diversificado para compartilhar suas pesquisas. Desse modo, o cerne dessa coletânea reside em sua capacidade de apresentar uma nova geração de analistas, acadêmicos e pesquisadores, cujas vozes têm sido historicamente negligenciadas ou omitidas pela bibliografia. O título "Iselu Agbayê" é derivado do yorubá, e seu significado remete à política internacional, (pronunciado a partir do acento nigeriano dos nossos dias ô-Xêlu agbaiê), o que se traduziria melhor e de forma indiscutivelmente mais rica em algo como “políticas do mundo daqui”, ou ainda “lutas deste mundo de cá.



Sede do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro na Glória.

Crédito da imagem: Café História.


É crucial reconhecer que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pessoas pretas e pardas ainda enfrentam desigualdades significativas no acesso a emprego, educação, segurança e saneamento. Cerca de 56% dos autodeclarados no Brasil pertencem a essa parcela da população, tornando a questão das desigualdades socioeconômicas e raciais de extrema relevância no contexto internacional. Embora os jovens autores e autoras desta coletânea não sejam diplomatas atualmente ou concorram a vagas no Itamaraty, pelo menos, por enquanto até onde eu saiba, é importante ressaltar que o perfil da diplomacia brasileira ainda é predominantemente composto por homens brancos e heterossexuais, como bem apontou a socióloga Karla Gobo. A pesquisadora realiza uma importante investigação sobre o perfil dos diplomatas brasileiros, e apontou que a instituição ainda não representa adequadamente a diversidade da sociedade brasileira, apesar de algumas medidas em curso, a exemplo do programa de ação afirmativa no âmbito do Ministério das Relações Exteriores, criado em 2002.


A área de Relações Internacionais é um campo acadêmico que busca compreender as complexas interações entre países e culturas ao redor do mundo. Para que essa compreensão seja completa e abrangente, é fundamental que a diversidade e a representatividade sejam valorizadas. Ao incluir vozes de autoras e autores negros, proporcionamos uma visão mais fiel da realidade étnica e racial da sociedade. Essa inclusão é essencial para fortalecer e inspirar outros estudantes, pesquisadores e profissionais negros, mostrando que suas contribuições e perspectivas são valorizadas e essenciais para o enriquecimento do campo acadêmico. Saliento, ainda, que a diversidade de perspectivas contribui para a desconstrução de estereótipos e preconceitos arraigados na sociedade brasileira. Desse modo, é possível desafiar narrativas estigmatizadas e simplistas sobre diferentes grupos étnicos e raciais, promovendo uma análise mais crítica das dinâmicas globais.


Essa iniciativa também é relevante para enfrentar o eurocentrismo que historicamente dominou o campo de Relações Internacionais. Ao valorizar perspectivas de diversas origens culturais, o livro contribui para uma visão mais plural e inclusiva das questões internacionais, reconhecendo que o conhecimento não é limitado a uma única perspectiva. Isso me remete à obra da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que ressalta a importância da diversidade de perspectivas para a nossa compreensão do mundo, evitando, assim, o risco de adotar estereótipos, preconceitos e visões limitadas. Daí o perigo de uma história única.

Assim, a inclusão de autoras e autores negros no livro também tem um impacto positivo na construção de uma visão global mais completa. A diversidade de temas e enfoques contribui para uma análise mais profunda e contextualizada dos desafios internacionais. Além disso, fortalece a luta contra as desigualdades. Conforme destacado por Sueli Carneiro, em 2005, a academia no Brasil ainda enfrenta um cenário de baixa representatividade de intelectuais negros tanto em âmbito nacional como internacional, apesar de alguns importantes avanços nos últimos anos.


Essa realidade é agravada pela escassez de referências bibliográficas de autores e autoras negros sendo devidamente exploradas nas diversas áreas do conhecimento, caracterizando um quadro de epistemicídio, uma forma de dominação étnico-racial, que foi abordado nas pesquisas sobre a decolonialidade do sociólogo português Boaventura de Souza Santos, e que inspirou outras pesquisas posteriores. No seu entendimento, o genocídio e o epistemicídio são estratégias fundamentais no processo de colonização, o qual deixou como legado o racismo institucional.



Capa do livro. Crédito: Editora Metanoia.


Para finalizar, aproveito para apresentar brevemente o sumário da coletânea. O capítulo “Violência Racial e Resistência Negra: percursos entre Brasil e Estados Unidos" apresenta uma análise profunda sobre a violência racial e a resistência negra nesses dois países. Ethol Exime explora a cooperação entre Brasil e Haiti, focando na agricultura familiar. Gleyce Kerolin aborda a cooperação em defesa entre Brasil e África, destacando o papel do Brasil no Atlântico Sul e sua atuação em Missões de Paz em países africanos. Gleyce Apolinário discute a interseccionalidade da "questão de cor e gênero no Brasil e nos Estados Unidos". João Mina discorre sobre a política internacional dos anos 70 e o movimento social negro brasileiro. Alan da Cruz inova ao analisar as teologias emancipatórias nas Relações Internacionais. Marcelo Mizzurine examina a formação dos contingentes policiais em Moçambique e Brasil. Letícia Santana expõe experiências de jovens negros em Portugal. Renan de Sá reflete sobre reparações históricas da escravidão. Brunior Alves ressignifica o conceito de "negro" no contexto globalizado, enquanto Tainah Santos aborda o Fórum de Mulheres Negras.


Como se observa trata-se de uma coletânea que contribui para ampliar o olhar sobre as relações internacionais, não apenas considerando questões políticas e econômicas, mas também abordando temas sociais, como a representatividade e a luta contra as desigualdades, que têm uma dimensão global e merecem ser discutidos de forma inclusiva. Aqui, a minha contribuição como historiadora e professora, da área História do Brasil, está presente, uma vez que, me debrucei sobre o tema dos limites fronteiras territoriais anteriormente, e reconheço, a relação intrínseca entre a história do nosso país e as questões internacionais, assim como as dinâmicas geopolíticas podem impactar a nossa sociedade, ou seja, como as coisas, de fato, estão interligadas. Além disso, o livro é um encontro pessoal com a minha ancestralidade.



Referências:


ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. SP: Companhia das Letras, 2018.


CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, 2005. Disponível em: https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf Acesso em: 10 jul. 2023.


GOBO, Karla. Da exclusão à inclusão consentida: negros e mulheres na diplomacia brasileira. Política e Sociedade: Revista de Sociologia Política, UFSC, Florianopólis, v. 17, n. 38, jan./abr. de 2018. Disponivel em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-7984.2018v17n38p440/36871 Acesso em: 10 jul. 2023.


Página oficial do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Sítio eletrônico: https://ihgb.org.br/


Página oficial do MUHCAB. Sítio eletrônico: https://www.rio.rj.gov.br/web/muhcab


SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4577657/mod_resource/content/1/BOAVENTURA%20-%202009.pdf Acesso em: 11 jul. 2023.


SENA, André; CARRIS, Luciene. Iselu Agbayê: 11 jovens negras discutindo política e relações internacionais. Rio de Janeiro: Metanoia, 2022. Link: Editora Metanoia



*Luciene Carris é historiadora (UERJ).



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