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Paz no Sul: os caminhos diplomáticos de Afrânio de Melo Franco.

Toronto, 01 de outubro de 2021.

André Sena*


O que me levou ao título deste texto foi a obra Caminhos Diplomáticos. 10 anos de Agenda Internacional, escrita em 1997 pelo embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima. Ali, o embaixador brasileiro apresentava algumas ideias interessantes acerca da relação entre as aspirações domésticas de um país e sua política exterior. Evito aqui o termo “política externa”, pelo seu caráter crescentemente teorizado e abstrato. Falo, portanto, da diplomacia que se dá no terreno da objetividade possível, atravessada pelo calor e pelas paixões do momento, ainda que a busca pela racionalidade dos processos decisórios seja sempre um norte necessário neste meio. Uma diplomacia de consequências e não de ornamentos e cerimoniais.



Crédito: FGV.


No livro ao qual me refiro, Flecha de Lima defende que a diplomacia de um país deve de alguma maneira projetar no cenário externo os elementos que compõem o conjunto de valores da sociedade do país no seu exercício. Há então, dirá o autor, uma afinidade responsável, ou até mesmo um certo diálogo entre interesse nacional, valores nacionais e atuação diplomática no cenário internacional. Isto ocorrerá quase sempre, naturalmente, em uma cadência contingente, levando-se em consideração as relações de poder entre as potências internacionais (globais ou regionais), os cenários instáveis que sempre rodeiam a arena mundial, e as descontinuidades frequentemente presentes, em um sistema internacional ontologicamente anárquico.


Mesmo assim, meu pendor pesa para os argumentos do autor de Caminhos Diplomáticos. E a atuação do grande diplomata e político brasileiro Afrânio Camorim Jacaúna de Melo Franco, tanto no ambiente setentrional quanto meridional do continente sul-americano, pode nos apresentar um interessante quadro ilustrativo do que deseja nos dizer Flecha de Lima.


O mineiro de Paracatu nasceu no Império no ano de 1870, mas foi bem cedo adepto da causa republicana no Brasil. Cresceu em um meio político tradicional nas Minas Gerais, que muito contribuiria para a sua visão crítica sobre os processos políticos das oligarquias do sudeste brasileiro, e para o seu entusiasmo pela revolução que depôs Washington Luís e levou Vargas ao poder em 1930. Serviu a Presidentes inexpressivos como Delfim Moreira, e muitos o apelidaram então de “Primeiro-Ministro do Brasil”, por estar sempre na liderança de processos decisórios na alta política brasileira do período.


Em um momento onde as relações de trabalho tornavam-se um debate cada vez mais público, e onde a questão operária no Brasil assumia uma nova dinâmica (especialmente com as greves de 1917), Afrânio de Melo Franco liderou em 1919 a delegação brasileira na I Conferência Internacional do Trabalho, em Washington, onde decisões históricas para a classe trabalhadora seriam tomadas, especialmente a adesão dos países signatários da conferência ao regime de 8 horas diárias e 48 semanais de trabalho, algo já reivindicado e discutido por sindicatos ao redor do mundo, desde a segunda metade do século XIX.


Entretanto, foi no campo da resolução de conflitos internacionais, no ambiente sul-americano, que o diplomata projetou a performance diplomática brasileira, tanto no campo da arbitragem como na produção de laudos, resoluções e regimes, que normalizariam relações de países como Bolívia, Paraguai, Peru e Colômbia. A compreensão de que a atuação brasileira na estabilização da América do Sul interessava domesticamente ao Brasil, na medida em que paz e segurança regionais podem traduzir-se em caminhos mais diretos à prosperidade e ao desenvolvimento nacionais se mostravam claros para o gênio político e negociador de Melo Franco.


O desafio da diplomacia brasileira, por ele liderada, no que se refere as repúblicas da Bolívia e Paraguai era imenso, na medida em que lidava diretamente com uma conflagração entre os dois países, que convencionalmente chamamos de a Guerra do Chaco, ocorrida entre os anos de 1932 e 1935. A descoberta de uma reserva de 600.000 km quadrados de petróleo nos Andes provocou um conflito entre esses dois países pela região do Chaco Boreal, com um saldo de 90 mil mortos. A Guerra do Chaco mostrava-se uma questão sensível para o Brasil, em função das fronteiras consolidadas entre 1927 e 1930 no Centro-Oeste brasileiro; portanto, por uma questão estratégica, a diplomacia Melo Franco acompanhou o conflito desde seus primeiros momentos.


Com maestria, Afrânio de Melo Franco atuava em dois cenários desafiadores: um doméstico, com o Brasil ainda no “Governo Provisório” de Vargas em 1932; e ao mesmo tempo posicionando a política exterior brasileira com moderação e equilíbrio entre o Grupo dos Neutros, que a partir dos Estados Unidos buscava a resolução da Guerra, e uma iniciativa genuinamente sul-americana, liderada pelo Brasil e pela Argentina, para encaminhar a pacificação dos beligerantes. Em um trecho de suas memórias, que escreverá ao fim da vida, a tensão daqueles tempos e sua astúcia como diplomata ficam efetivamente claras.


Compreendíamos que as medidas à double emploi, isto é, tomadas simultaneamente e nem sempre coincidentes em suas modalidades, prejudicavam o bom andamento das negociações, tanto em Washington como alhures; mas estávamos convencidos, por outro lado, que essa incordenação de ideias e processos de solução era devida, ao nervosismo do momento e ao anseio de todos, em busca de uma fórmula que impedisse o desencadeamento da guerra. (CARVALHO, 2019)


Embora culturalmente estudemos ad nauseam a diplomacia do Barão do Rio Branco como um marco para a história diplomática brasileira, é fundamental que conheçamos no ambiente da história pública, outros atores que deram ao Brasil a reputação diplomática de que ainda goza nos dias de hoje. Afrânio de Melo Franco é sem dúvida uma dessas figuras, que atuou tanto no terreno interno quanto no internacional, em momentos historicamente nebulosos e politicamente tensos. Há ainda uma valiosa contribuição sua para o congelamento de outro contencioso, quando 300 peruanos armados cercaram o Porto de Letícia, iniciando um conflito de dois anos com a Colômbia, na mesma época em que o diplomata brasileiro concentrava esforços nas relações paraguaio-bolivianas.


Definitivamente a capacidade no enfrentamento de processos conflituais internacionais de dimensão múltipla, demonstrada por Afrânio de Melo Franco, chama atenção e desperta a curiosidade de qualquer leitor ávido de história e apaixonado pelos estudos internacionais. O papel que desempenhou na estabilização das relações de poder na América do Sul, indubitavelmente contribuiu para o desenvolvimento da política internacional, ambientada no que hoje chamamos de Sul Global.


*André Sena é historiador (UERJ).


REFERÊNCIAS:


CARVALHO, Gustavo Eberle. O Brasil e a geopolítica da Guerra do Chaco Diplomacia e política na Conferência de Paz de Buenos Aires (1935-1939). Universidade de Brasília, 2019. (dissertação de mestrado)

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Afrânio de Melo Franco. (verbete)

CPDOC – Fundação Getúlio Vargas. Afrânio de Melo Franco. (dossier)





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