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  • Foto do escritorLuciene Carris

Os originais cariocas do Rio

Rio de Janeiro, 04 de fevereiro de 2023.

Luciene Carris*


Na esteira de um texto anterior, quando me debrucei sobre a importância da Baía de Guanabara para o desenvolvimento do Rio de Janeiro, apontei para o apagamento da história dos povos indígenas no estado. Poucos brasileiros, ainda, hoje em dia, conhecem a contribuição da cultura indígena para a sociedade brasileira. E, assim, seguimos naturalizando comportamentos, gostos culinários, bem como expressões, sem nos darmos conta de suas origens. O gosto pelo banho diário, assim como pelo refrigerante de guaraná, pela tapioca, pelo milho, assim como degustar um delicioso açaí, além de se deitar numa rede, andar de pés descalços em casa, bem como se utilizar de práticas populares de cura como o chá de boldo, o óleo de copaíba e a catuaba, por exemplo, estão disponíveis no nosso cotidiano, e fazem parte da nossa herança cultural indígena.



Vista da Igreja e Praia da Glória, Leandro Joaquim, 1790.

Acervo Museu Histórico Nacional.


Diariamente ouvimos por aí nomes de origem indígena como Copacabana, Ipanema, Guanabara, Catete, Guaratiba, Tijuca, Andaraí, Paquetá, Sepetiba, Jacarepaguá, entre tantos outros. O ritmo frenético da vida cotidiana e a insegurança das ruas não nos permite uma reflexão mais atenta sobre onde moramos ou pelos locais por onde passamos. O desinteresse pode ser real, mas incentivar a curiosidade sobre determinados aspectos da nossa realidade poderia contribuir para a valorização da nossa história, e, assim, para a compreensão de que o exercício da cidadania inclui a empatia e a alteridade, pois, isto envolve a busca, em última instância, por uma sociedade mais inclusiva e, quiçá, mais justa. Afinal, apreciamos melhor as coisas na medida em que aprendemos um pouco mais sobre elas, disse um sábio historiador certa vez.


A “naturalização” do apagamento indígena na história da cidade leva ao ponto nevrálgico de não enxergar os povos indígenas como parte da nossa sociedade. De acordo com o Censo de 2010, o primeiro a mapear a presença dos indígenas no Brasil, havia cerca de 900 mil indígenas no país, divididos em 305 etnias e 274 línguas. Também se constatou que, aproximadamente, 315 mil moravam em áreas urbanas, e o crescimento de indígenas em aldeias e campo em consequência de um movimento de “retomadas”, ou seja, de retorno para terras tradicionais. No caso do estado do Rio de Janeiro, o Censo de 2010 contabilizou a presença de 15 mil indígenas.


Isto me leva refletir ou pensar sobre uma arte que considero fundamental: a arte de flanar pelas ruas da cidade, uma forma de se apropriar da melhor forma do espaço urbano, das ruas, das suas avenidas, dos seus parques e da sua natureza exuberante. Porém, poucos são os marcos existentes sobre a presença indígena no Rio de Janeiro, podemos aqui recuperar o monumento em homenagem à Araribóia em Niterói, ao cacique que lutou contra os franceses e fundou uma cidade.


Como bem apontou a historiadora Ana Paula Silva em entrevista concedida a Mongabay (2021), a falta de placas contando a história da presença indígena contribui para o seu apagamento. Assim, por exemplo, na construção do Aqueduto da Carioca, que levava as águas do rio da Carioca para o Centro, houve a participação da mão de obra indígena, aliás, uma história pouco conhecida.


Quem perambula pelo bairro da Glória, em especial, atravessa a Praça Luiz de Camões, se depara com alguns monumentos interessantes como: a estátua de São Sebastião, o padroeiro da cidade; o Monumento ao Descobrimento com as estátuas de Pedro Álvares Cabral, Pero Vaz de Caminha e Frei Henrique Soares. E, no alto, ali soberana no morro, se encontra a Igreja de Nossa Senhora do Outeiro da Glória, construída na segunda metade do século XVIII, uma joia da arquitetura colonial e um notável cartão postal da cidade. Os aterramentos realizados ao longo do tempo afastaram o mar dali de perto, de onde existia a Praia do Russel e o Mercado da Glória sumiram do mapa com a construção da Avenida Beira Mar em 1906, e, posteriormente, do Parque do Flamengo na década de 1960.


A vinda da Família Real para o Brasil em 1808 transformou a Glória, desse modo, a antiga igreja colonial se tornou um espaço bem frequentado pela Corte, aliás, foi o local escolhido para o casamento de D. Pedro I e a princesa Leopoldina, que era uma fiel devota de Nossa Senhora da Glória. Contudo, aparentemente a nostalgia e a valorização de um passado soberano apagou da história local a aldeia indígena dos tupinambás que ali existiu em tempos remotos, e que era denominada de Kariók ou Karióg, nome que possivelmente deu origem ao termo carioca. Ao que tudo indica, a construção de uma igreja católica naquele morro não foi aleatória, de certa forma, implicava na imposição, mais do que simbólica, da religião católica sobre os povos originários.


Não muito distante dali, no século XVI, com intuito de expulsar os indígenas da Lagoa Rodrigo de Freitas, o governador geral do sul do Brasil, Antônio Salema, buscou uma solução atualmente no mínimo repreensível, doou roupas infectadas com o vírus da varíola, atitude que levou à morte de muitos e à fuga de tantos outros da região. Após a sua expulsão, foi erguido o Engenho D’Rey no Jardim Botânico e os canaviais passaram a dominar a paisagem. É inimaginável pensar na antiga lagoa repleta de aldeias indígenas, assim como reconhecer que séculos depois foi habitada por comunidades ao seu redor, sendo a maior delas a Favela da Praia do Pinto incendiada e removida em 1969.


Ao longo do tempo, muitas terras foram aterradas, assim como a natureza foi sendo dizimada, e antigas construções destruídas para dar lugar às ruas ou avenidas, bem como tantas outras edificações foram sendo reconstruídas. A situação me relembrou uma passagem da obra do historiador francês, François Dosse, que afirmou que tal como a memória supõe o esquecimento, a cidade para existir pressupõe a demolição para se construir o novo (DOSSE, 2013, p. 87). Nesse sentido, o Rio de Janeiro aparenta estar sempre em construção, desconstrução e reconstrução, em permanente transformação. A constante mudança envolveu, ainda, a violência, o genocídio, a aculturação e o deslocamento de muitos indígenas da região, que até pouco tempo estavam “esquecidos” da história do Rio de Janeiro.


Referências:


Caderno Temático 2016: População Indígena. Atlas Nacional Digital do Brasil, IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps/atlas_nacional/#/home Acesso em: 01 de fev. 2023.

DOSSE, François. O espaço habitado segundo Michael de Certeau. ArtCultura, Uberlândia, v. 15, n. 27, jul./dez. 2013.

FREIRE, José Ribamar Bessa Freire. Cinco ideias equivocadas sobre o índio. Revista Ensaios e Pesquisa em Educação, UFRRJ, 2016, v. 01. Disponível em: https://periodicos.ufrrj.br/index.php/repecult/article/view/578/578 Acesso em: 28 de jan. 2023.

Identidades do Rio. Disponível em: http://www.pensario.uff.br/projeto Acesso em: 01 fev. 2023.

MENDES, Karla. Indígenas no Rio de Janeiro lutam para reverter séculos de apagamento. Mongabay, 30 de junho de 2021. Disponível em: https://brasil.mongabay.com/2021/06/indigenas-no-rio-lutam-para-reverter-seculos-de-apagamento/ Acesso em: 29 jan. 2023.

OLIVEIRA, Renata de Almeida; ABREU, Regina. Testemunhos e narrativas sobre a memória indígena no estado do Rio de Janeiro: ressignificações e produção de novas fontes de pesquisa. Anais do X Encontro Nacional de História Oral, 2010. Disponível em: https://www.encontro2010.historiaoral.org.br/resources/anais/2/1270431736_ARQUIVO_ArtigoEncontrodeHistoriaoralversaoFinal04042010.pdf Acesso em: 01 fev. 2023.

RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. Lagoa Rodrigo de Freitas: história de uma ocupação desordenada. Oecologia Australis, 16(3), 2012. p. 339-352. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/oa/article/view/8215/6676 Acesso em: 01 fev. 2023.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).



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