Rio de Janeiro, 01 de maio de 2022.
Sonia Gomes Pereira*
Neste ano de 2022 comemora-se o centenário da Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo em fevereiro de 1922. Inúmeros seminários e mesas-redondas têm sido organizados e vários artigos têm saído na imprensa e nas mídias digitais, retomando a discussão sobre a importância daquele evento, que foi tomado durante bastante tempo como marco do início do Modernismo no Brasil.
Capa do catálogo da Semana de 22 e cartaz do evento, ambos criados por Di Cavalcanti.
Crédito: Site do Museu de Arte Moderna do Rio
A Semana aconteceu em três espetáculos realizados no Teatro Municipal de São Paulo, resultado de reuniões de artistas em casa de membros da elite paulista, como Paulo Prado. Foi constituída por apresentações de poetas e músicos, além de conferências dos jovens modernistas, assim como de escritores mais velhos, como Graça Aranha. Seguia o modelo de outros eventos no gênero na Europa e nos Estados Unidos, que pretendiam abrir espaço para a nova arte moderna que tinha surgido no início do século. Apresentavam-se com um discurso demolidor em relação à arte do passado e veemente em prol de uma ruptura radical na cultura. Receberam grandes vaias dos espectadores in loco e muitas críticas nos jornais nos dias que se seguiram.
Acompanhando as manifestações no palco do teatro, uma exposição foi organizada no foyer, tema muito bem estudado por Aracy Amaral num livro já clássico: Artes Plásticas na Semana de 22. Nessa obra, Aracy analisa o catálogo e as obras dos expositores e chega a uma conclusão importante. A exposição reuniu alguns artistas desconhecidos, mesmo posteriormente. Outros ainda estavam numa espécie de passagem entre os modelos do passado e as novas formas modernas, como era o caso de Di Cavalcanti e Rego Monteiro: o que expuseram nada apresentava em comum com o rumo que a obra deles iria revelar mais tarde. A única artista expositora que, naquela ocasião, poderia ser chamada de moderna foi Anita Malfatti, regressada ao Brasil depois de períodos de estudos na Alemanha e nos Estados Unidos, onde teve contacto com o Expressionismo.
Ficou, assim, evidente que a importância da Semana tinha sido muito mais teórica do que prática, divulgando um discurso moderno, sobretudo através de seus porta-vozes mais importantes, Mário de Andrade e Oswald de Andrade.
No entanto, pelo menos no campo das artes plásticas, o processo consolidou-se nos anos seguintes, através de atividades do chamado grupo modernista, agora acrescido da pintora Tarsila do Amaral. Assim, foram nos movimentos Pau-Brasil e Antropofagia – ainda nos anos 1920 - que as propostas modernistas se tornaram mais claras. Pregava-se, então, uma modernização formal, mas ancorada nas raízes da cultura brasileira. Redescobria-se o passado colonial e as matrizes indígenas e negras como constitutivas do imaginário brasileiro.
As comemorações do Centenário da Semana nesse ano de 2022 têm tomado um tom bastante crítico, não apenas quanto ao mérito do movimento paulista, mas, sobretudo, quanto ao seu pretenso pioneirismo.
Vou discutir aqui a questão do pioneirismo. Realmente o discurso dos jovens modernistas carregava o tom inaugural como era comum nos grupos modernos europeus e norte-americanos da época. Afinal toda a historiografia da arte moderna partiu da ideia de fazer tabula rasa do passado e começar nova era inteiramente livre.
Mas a própria Aracy Amaral já evidenciava na obra citada acima a existência de obras modernas na passagem dos séculos XIX e XX, como é o caso, por exemplo, do pintor Belmiro de Almeida. Outros autores posteriores, como Mônica Veloso, trabalharam nesse tema. Ficou evidente que a chamada Geração de 1870 já estava comprometida com a modernidade, embora em níveis e com propostas diferentes.
Agora, na comemoração do Centenário, muito se tem reivindicado, em vários estados do Brasil, a existência de outros modernismos, antes do Modernismo paulista. É um movimento interessante que traz à luz artistas em grande parte desconhecidos e que extrapola o circuito entre São Paulo e Rio de Janeiro.
Mas em todas as reivindicações de modernidade antes do Modernismo paulista, mesmo no caso do Rio de Janeiro, existe para mim um problema teórico que precisaria ser estudado com maior profundidade. De que moderno se trata? É simplesmente a constatação da modernização de cidades e de meios de transporte e comunicação num país periférico como o Brasil? Existe nessas obras da passagem dos séculos XIX e XX um ideário que se possa identificar como moderno, isto é, a confrontação com a longa tradição artística ocidental, com suas bases metafísicas, e a procura de novas formas compatíveis com a nova sociedade da máquina? Como essa produção artística lidou com as questões formais, que foram de enorme importância para a arte dessa época?
Mesmo na Europa as questões da modernidade atravessaram os inúmeros movimentos artísticos, dentro ou fora daqueles considerados posteriormente como vanguardas. Afinal, mesmo que hoje a nossa geração esteja fazendo uma profunda reavaliação da historiografia modernista, não é possível ignorar que os artistas modernos tiveram de enfrentar “na carne” os conflitos e as ambiguidades que a modernidade estava trazendo, tanto nos países hegemônicos como periféricos.
Com uma maior definição conceitual do que constitui o moderno ou os modernos no final do século XIX e início do XX no Brasil será possível dialogar melhor com o Modernismo paulista que, pode não ter sido o primeiro, mas tem suas diretrizes teóricas e formais claramente traçadas.
*Sônia Gomes Pereira é museóloga com doutorado em Comunicação e Cultura e pós-doutorado no Laboratoire du Patrimoine Français/CNRS em Paris. É professora titular da UNIRIO e professora emérita da UFRJ. Faz parte do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ.
Referências:
AMARAL, Aracy A. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Editora 34, 1998.
VELOSO, Mônica. Modernismo no Rio de Janeiro. Turunas e Quixotes. Petrópolis: KBR, 2015.
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