Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 2025.
Maria Nilda Bizzo*
Contar uma história comunitária requer do historiador um trabalho de parto, (a)colher memórias, fazer emergir a vida de um lugar, em suas tramas e dobras, vínculos e rompimentos, mergulhar nas experiências rememoradas e nos relatos de vida dos moradores, esse parto nos é possibilitado pela prática da metodologia de história oral!
Para a elaboração ativa dos elos entre passado e presente, conforme descreveu nossa saudosa socióloga Ana Clara Torres[1], é indispensável reservar, para si, o tempo necessário às longas escutas e à lenta decantação de lembranças, em meio a agregados de objetos aparentemente simples. As narrativas enredam a matéria, expõem as origens das práticas sociais e, sobretudo, desenham mosaicos que, pelo ordenamento criativo de diversos materiais, desvelam estruturas do convívio social. Há, portanto, um caminho para conhecer o Horto. Este caminho possibilita o encantamento do lugar e evita o desenraizamento. Afinal, nem tudo é fluxo e nem tudo é mercado.
A vida não acontece, somente, segundo a lógica instrumental e utilitarista e nem se reduz à existência dos dominantes. Ao contrário, as ações sociais também seguem outros comandos culturais e éticos, geradores de aprendizados sociais e permanências. Existe continuidade em meio às transformações, demolições e ruínas. Abrigos e práticas solidárias sustentam a respiração mais leve do lugar. Este é um outro ritmo, um outro território. E assim, buscou-se contar sobre as práticas rememoradas desse lugar chamado Horto Florestal.
Em 2002, o projeto Nossa História, idealizado por esta autora, foi realizado pela Ong Ler&Agir em Vilar Carioca, Campo Grande, zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, e em 2003 no Horto, Jardim Botânico, zona Sul da Cidade, em parceira com as Associações de Moradores locais. O objetivo era contar histórias de formação de territorialidades a partir da memória coletiva de seus moradores mais velhos em interação com os jovens, buscando valorizar culturas locais e compartilhar saberes. O grupo de trabalho era formado por jovens dessas localidades sob a coordenação multidisciplinar de urbanistas, socióloga e historiadora, que ofereciam oficinas de direitos humanos, meio ambiente[2] e de produção de documentário. Os jovens escolhiam a forma de transmitir essas histórias através de documentários, livros e exposições.

No Horto, uma peculiaridade para os olhos urbanistas era compreender a geografia do lugar. Uma rua principal, Pacheco Leão, dividia modos bem distintos de vida, na zona sul do Rio de Janeiro. De um lado, casas luxuosas no alto do morro, abaixo, vilas operárias simples. Do outro lado, no entorno do Parque Jardim Botânico, moradias simples. Mais à frente, um condomínio habitacional (Balança). De pronto, com olhar de planejadora urbana, notou-se que havia ali, processos históricos distintos de ocupações.
A partir de longas escutas, conversas, rememorações e caminhadas lentas, processos históricos de constituição da comunidade, os sentidos atribuídos ao lugar e como seus moradores construíram vínculos representativos foram sendo revelados.

Memórias de experiências que vão desde a chegada ao local, passando pelo trabalho, por laços de solidariedade através de festas, blocos carnavalescos, saberes tradicionais com ervas, memórias de remoções, de luta contra projetos governamentais de Cemitério para o local, de conjunto habitacional, que foram suspensos por conta da resistência e mobilização dos moradores até relações complexas de moradia e lutas pelo direito de permanecer no local foram constituindo a história coletiva.
Trata-se, como nos ensina Walter Benjamin, de operar uma espécie de condensação que permita ao presente reencontrar, reativar um aspecto perdido do passado e retomar o fio de uma história inacabada, para tecer-lhe a continuação[3]. Para tanto, é necessária a obtenção de uma memória que não consta nos livros da história oficial, mas que pode ser obtida pela rememoração e narração de experiências do passado, de lutas anteriores e atualizá-las em sua prática presente. Para esta empreitada, Benjamin nos lembra que, é preciso que seja retomado o dom de ouvir e contar, contar sempre de novo, pois somente assim as histórias se conservam e se reatualizam[4].
Ouvimos o contar e recontar de histórias de pessoas em diferentes ocasiões, e de variadas área de ocupação do Horto, gênero e idade. Conforme memórias revividas foi-se juntando os cacos...
a) O Lugar e sua Ocupação: Ocupação do Real Horto/Jardim Botânico; Ocupação da Fábrica de Tecidos Carioca/ Vilas Operárias; Ocupação do Condomínio Dona Castorina ( o “Balança”);
b) A Construção de Espaços Políticos de resistência;
c) Experiências na (re) construção do lugar e sua dimensão cultural: Experiências vinculadas aos saberes locais; Experiências Junto aos Clubes; Experiências nas Festas Populares; Experiências com a Música e com os Blocos de Carnaval.

E, assim, foi dado corpo ao livro Cacos de Memórias, resultado do projeto Nossa História, bem como ao documentário Horto Real.

Projeto Horto Real - Projeto Nossa História
Clique na seta para ver o documentário
E aquela peculiaridade de casas luxuosas no alto do morro e as simples embaixo (no asfalto), diferentemente de outras partes da Cidade em que moradias simples estão no morro, lembranças dos moradores Francisco da Silva e Silvio Iório explicam:
-“Assim que a fábrica faliu, começaram a aparecer as mansões. Veio o primeiro, o segundo e assim foi... É isso aí que vocês estão vendo. Não prejudicou ninguém, veio nos favorecer. Isso ia virar uma favela. Foram esses ‘invasores’ que vieram nos favorecer. Foi a nossa sorte esses bacanas ‘invadirem’ isso aqui” (Lembranças do Sr. Francisco da Silva, 77 anos).
-“Aqui é o único lugar que os morros são ocupados pelos caras ricos e os pobres moram embaixo” (Lembranças do Sr. Silvio Iorio, 82 anos).

Esta experiência, com aprendizados e ensinamentos recíprocos que buscamos passar para os outros com os quais também aprendemos e que são participantes ativos no processo de recontar histórias comunitárias, tem nos confirmado a importância e o sentido da história do Nossa História. Contribuir para lutas e resistencias comunitárias a partir da memória coletiva, como disse Walter Benjamin, “pode ser o início de uma experiência especial: reminiscências capazes de gerar iluminações para o presente e utopias para o futuro”.
[1] Ana Clara Torres escreveu no Prefácio do livro Cacos de memórias, experiências e desejos na (re) construção do lugar: o Horto Florestal do Rio de Janeiro. RJ: Arquimedes, 2005, p.5.
[2] Gilberta Acselrad (Núcleo de Estudos em Drogas/AIDS e Direitos Humanos da UERJ) realizou oficina de Direitos Humanos em Vilar Carioca; Bernardete Veríssimo (Jornalista e ambientalista) realizou oficina de Meio Ambiente; Célia Neves (Socióloga e Historiadora) realizou oficina de aplicação de roteiro; Rita de Cássia Carneiro (Arquiteta), escritora do livro Cacos de Memórias; Eloisa Rezende (Comunicóloga).
[3] BENJAMIN, Andrew E., OSBORNE, Peter (orgs.). A filosofia de Walter Benjamin: destruição e experiência. Trad.: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
[4] Em O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, Benjamim contamina tudo que pode haver em nós de senso prático e instrumental e nos incita a romper com o esquadrinhamento imposto pelo tempo da modernidade, fazendo emergir “o pássaro que choca os ovos da experiência”(p.204).
*Maria Bizzo é Professora de economia na Faculdade Gama e Souza/RJ. Pesquisadora em Territórios e Sustentabilidade, Conflitos Ambientais. Mestre em Planejamento Urbano (IPPUR/UFRJ). Autora do livro Cacos de Memórias: experiências e desejos na (re)construção do lugar. Rio de Janeiro: Arquimedes, 2005.
Gostou do texto? Então não deixe de clicar no coração aqui embaixo e de compartilhar. E deixe seu comentário ou dúvida!
Comments