Rio de Janeiro, 01 de janeiro de 2022.
Luciene Carris*.
Formado pela École Normale de Cluny em 1877, filho de pais agricultores, Henri-Anatole Coudreau ingressou como docente de geografia e história na École Professionale de Reims por um curto período. Acompanhado de sua esposa Marie Octavie Coudreau, companheira de várias expedições, veio para a região amazônica em 1881, aos vinte e um anos de idade, estabelecendo-se em Caiena como professor de um liceu local. Em 1883, publicou um trabalho intitulado Richesses de la Guyenne Française, que viria a ser premiado com uma medalha na Exposição de Amsterdam. Nesse mesmo ano, por intermédio de Charles Maunoir, secretário da Sociedade de Geografia de Paris, à serviço do Ministério da Marinha e das Colônias excursionou pela região contestada entre a Guiana Francesa e o Brasil entre 1883 e 1884. Seguiram-se outras duas expedições entre 1887-1889 e entre 1889-1891, ao fim de cada viagem realizada, Coudreau organizava um livro referente com os resultados das suas investigações.
Henri Coudreau.
Crédito da imagem: http://www.henricoudreau.fr/
Há o registro de uma correspondência de Coudreau ao Imperador D. Pedro II no final do Império. Em 1884, o jovem explorador apresentou os objetivos de sua missão na Guiana Francesa e ao sul da Amazônia. Informava que dava prosseguimento aos estudos arqueológicos, paleontológicos e linguísticos das sociedades indígenas iniciados na missão anterior. Além disso, pretendia examinar a situação socioeconômico dos habitantes daqueles povoados. Para tanto, numa missiva solicitou ao monarca uma embarcação. A resposta veio do ministro dos Negócios Exteriores Francisco Carvalho de Soares Brandão, que comunicou a impossibilidade de auxliar em um empreendimento de natureza particular.
Mas os interesses do jovem geógrafo eram outros. A defesa da Guiana Independente ou da Nova Guiana, como era nomeada pelos franceses, apareceu de maneira consistente La France Équinoxiale de Coudreau, como resultado das expedições realizadas desde que aportou naquela região. A obra foi dividida em três volumes: Etudes sur les Guyanes et l'Amazonie, publicada (1886), Voyages à travers les Guyanes et l’Amazonie (1887), encerra a coleção um atlas.
A última década dos Oitocentos, foi um período bem movimentado para o jovem explorador francês. Viajou cerca de 2.600 quilômetros em rios, 1.400 em montanhas, marchou a pé valendo-se de bússolas e sabres para abertura de picadas, geralmente acompanhado de dois ou três índios. Afirmando-se como um explorador autodidata, Coudreau destacou-se como geógrafo, historiador, zoólogo, botânico, etnógrafo e linguista, adquirindo conhecimento suficiente das línguas das sociedades indígenas da região. Organizou uma cartografia precisa da Serra Tumucumaque e os principais rios do norte da Amazônia.
Defendia que o controle do espaço pressupunha um conhecimento preciso da região litigiosa, principalmente da parte contestada pela Guiana Francesa e pelo Brasil. Além de publicar diversas obras importantes sobre a região, principalmente sobre as sociedade indígenas, ao que tudo indica Coudreau pretendia convencer as autoridades franceses da importância da região para imigração europeia e a viabilidade da exploração econômica, utilizando-se da mão de obra indígena e negra em atividades agrícolas e extrativistas.
O certo é que na região litigiosa entre a Guiana Francesa e o Suriname haviam sido encontradas ricas jazidas de ouro, por esta razão, Coudreau vislumbrava a possibilidade de explorar tais depósitos. Com o patrocínio financeiro do governo francês ele realizou o mapeamento da região disputada, passando inclusive a residir na vila de Cunani, um lugar estratégico durante o período da corrida do ouro, onde se tentou fundar uma república independente. Segundo uma notícia publicada no Boletim da Sociedade de Geografia Comercial de Bordeaux, a descoberta vinha “atraindo a atenção de aventureiros e causando alguns conflitos”. Em sua obra Études sur les Guyanes et l’Amazonie, o geógrafo francês esclarecia que os habitantes se encontravam dispersos em seis capitanias, somando uma população estimada em mil e quinhentas pessoas, cuja idioma principal era o português, mas advertira sobre o uso do “crioulo francês” de Caiena. Apesar da efêmera duração, a República foi extinta pelo governo francês 1887, mas a sua implantação contribuiu para divulgar e ampliar sentimentos patrióticos em relação àquele cantão do território brasileiro.
Em 1890, o francês Jules Gros pretendia restabelecer a República de Cunani, argumentava que o governo brasileiro não fazia objeção à ocupação do território pela França, então, reivindicava a posse da margem direita do rio Carsevena. As notícias sobre a fundação da “pseudo-república”, “improvisada república” ou “Guiana independente” de Cunani rechearam as páginas dos boletins da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Geralmente satírica, a comissão da redação comentava as notícias extraídas de periódicos europeus. Em retrospecto, relatou que a região havia sido alvo de disputa de diversos povos. Os portugueses quiserem impor um principado, os poloneses pretendiam estabelecer uma “Nova Polônia”, os ingleses tentaram fundar uma estação naval e os norte-americanos pretendiam desenvolver estudos hidrográficos. Depois de criada, o presidente Jules Gros nomeou um gabinete e criou uma condecoração especial, a Estrela de Cunani, e curiosamente estabeleceu a sede do novo governo em Vannes, nos arredores de Paris.
Devido a intensa propaganda da imigração francesa na região do Amapá, no Brasil buscou-se também promover a ocupação da área por nacionais em 1891. A ideia partira do chefe da comissão da colonização da então chamada Guiana Brasileira, o capitão Filinto Alcino Braga Cavalcante, que percorreu o rio Araguari. A discussão ainda envolveu o governador do Pará, Justo Leite Chermont, que elaborou um projeto de colonização brasileira. Demandava o estabelecimento de um orçamento específico destinado ao seu plano, a ampliação da navegação entre Amapá e Caiena, com intuito de estreitar o comércio e impulsionar a exportação de gado da Ilha de Marajó. Além disso, previa a abertura de uma estrada entre Óbidos e Campos Gerais, nas proximidades da Guiana Inglesa. Podemos inferir que a importância dada a agricultura e a pecuária inseria-se na constatação de que o extrativismo não promovia a fixação dos indivíduos ao solo e possuía um potencial de destruição dos recursos naturais da região, filiando-se a um projeto civilizador que se opunha ao extrativismo.
Na medida em que se difundiam no Brasil os trabalhos do geógrafo francês nos jornais locais e em outros periódicos, a imagem de célebre geógrafo se transformava. Fora acusado pelas autoridades da Manaus de ser agente político a serviço da França. Por esta razão, Coudreau decidiu se refugiar durante cinco meses entre os indígenas. Ao que tudo indica o afastamento não foi em vão, pois naquele período em que conviveu entre as sociedades indígenas, examinou os seus costumes e os seus hábitos. Apesar de argumentar que as suas incursões pela região amazônica não possuíssem fins políticos, uma carta de um dos integrantes da expedição de Coudreau havia sido publicada em solo francês, e divulgada também em terras brasileiras, contrariava as suas proposições, pois afirmava “que a expedição tinha por objetivo de coletar documentos para esbulhar os brasileiros da margem esquerda do Amazonas”.
Entre 1893 e 1904, ocorreu uma troca de correspondência entre o Barão do Rio Branco e o casal Coudreau. Sem perder as esperanças de um possível encontro com Rio Branco, Coudreau escreveu uma última carta às margens do rio Tapajós em 1899. Nesta missiva, avisava que estava incumbido de uma missão pelo governo do Pará no alto Tapajós para estudar as sociedades indígenas daquela região até o final de janeiro. Como resultado de suas investigações, deveria entregar um relatório a Lauro Sodré, governador daquele estado. Em seguida, previa uma viagem ao Rio de Janeiro a fim de obter autorização para uma nova expedição na região amazônica junto aos representantes do governo federal e do Pará. Adversamente, Coudreau não pôde concluir a missão, pois veio a falecer. Em 1904, quando o Rio Branco ocupava a pasta do ministério das relações exteriores, Octavie Coudreau encaminhou duas missivas solicitando uma audiência. Infelizmente, não sabemos da resposta do então ministro, mas podemos supor que se tratava da viabilidade do traslado do corpo do Coudreau das terras brasileiras para sua terra natal, pois sabe-se que seus restos mortais foram transferidos para o jazigo de sua família em Angoulome.
Assim, constatamos como a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, criada em 1883, acompanhava atentamente as atividades de Coudreau pela região amazônica. A Sociedade se inspirava no modelo da Sociedade de Geografia de Paris, estabelecida em 1821. Os integrantes da congênere brasileira perceberam o papel fundamental que as sociedades geográficas europeias exerciam nos projetos políticos dos Estados nacionais e adaptaram os seus objetivos às circunstâncias dos governos monárquico e republicano.
Em uma das sessões, o engenheiro Antonio de Paula Freitas se manifestou, e ao reportar-se ao trabalho de Henri Coudreau, ressaltou a partilha da África, então promovida pela famigerada Conferência de Berlim realizada entre 1884 e 1885, afirmando que “o Amazonas não é continente negro” e que um país não poderia anexar parte do outro somente para ter limites naturais: “a palavra de ordem da França atual, da França de 1891 é a da expansão colonial, embora não seja dos mais gloriosos o papel daquela nação como potência colonial; como amante da geografia e das viagens: as descobertas do século XVI foram feitas sem a participação da França”. Constata-se que a pesquisa realizada por Coudreau fundamentou Vidal de La Blache na defesa francesa no Tribunal Arbitral de Berna no litígio franco-brasileiro. Apesar dos esforços realizados por Coudreau, a sentença final publicada em 1900 reconheceu o direito do Brasil, e contou com a participação do Barão do Rio Branco como advogado da causa brasileira.
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
Referências:
CARDOSO, Luciene Pereira Carris. O lugar da geografia brasileira: a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro entre 1883 e 1945. São Paulo: Annablume, 2013.
CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo (orgs.), História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.
SANTOS, Luis Cláudio Villafañe G. dos Santos. Juca Paranhos: o Barão do Rio Branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Sur les traces d'Henri Coudreau (Site). Disponível em http://www.henricoudreau.fr/index.html
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