Toronto, 16 de setembro de 2022.
André Sena*
Neste último domingo, eu e meu companheiro estávamos, como de costume, encerrando nosso final de tarde no Woody’s, uma casa de shows LGBTQIA2S+ em Toronto. Ir ao Woody’s aos domingos virou para nós dois um hábito semanal quase religioso. O ambiente, o repertório musical impecável, é coroado pelas apresentações de Drag Queens nacionalmente famosas no país, como Carlotta Carlyle e Jezabel Bardeaux. Tudo isso, liderado pelo humor judaico ácido e sagaz de Georgie Girl, para mim a rainha das Drags no Woody’s, de quem me tornei fã desde a primeira vez em que a vi no palco.
Crédito: Acervo pessoal.
Entretanto, neste domingo, o Woody’s parou, entre lágrimas e aplausos de todas as bichas presentes que vivem nesta única Monarquia Constitucional das Américas, e que perdeu sua Chefe de Estado, Elizabeth II, Rainha do Canadá, que ocupou o Trono do Carvalho (The Maple Leaf Throne) até seu falecimento recente. A ascensão de Elizabeth II ao trono canadense é um fato inédito na história do país. Embora a Monarquia britânica tenha sempre ocupado um papel central em sua história, ela foi a primeira soberana a ostentar o título de Rainha do Canadá, algo que agora passa a seu filho Carlos III. Nenhum outro monarca britânico, nem mesmo a Rainha Vitória teve este título.
Ao subir no palco, Georgie Girl realizou uma homenagem previsível para quase todos, e surpreendente para mim, que moro aqui a pouco menos de quatro anos. Ao som de Coldplay, arrancou aplausos e lágrimas, ao revelar em uma pirueta, uma imensa capa branca estampada com uma gigantesca foto da Monarca ainda em sua juventude, na década de 1950.
A morte de Elizabeth II foi um prato cheio para a blogosfera, a podosfera e a maior arena de debates com especialistas em tudo e mais alguma coisa no mundo: as redes sociais. No Brasil, houve até quem comemorasse a morte da Rainha, lamentando não ter sido a soberana mandada para o além pelas mãos da classe operária. Imperialismo, colonialismo, racismo e uma pletora de outros ismos apareceram de repente associados a figura da Rainha, que enquanto viva chegou a gozar de muita popularidade nas redes, inclusive com muitas tiradas de humor sob o formato de memes, que suspeitavam de sua eternidade, tanto para frente, quanto para trás. E como ríamos ao ver essas postagens.
A Monarquia britânica carrega um legado pesado de crimes, isso não se discute. Assim como outras Monarquias e Repúblicas que igualmente cometeram atrocidades ao logo da história, oprimindo seus próprios povos, ocupando e trucidando complexas sociedades ao longo do planeta. O Reino da Bélgica e o terror que impôs ao Congo, ou a República dos Estados Unidos e seus impulsos racistas domésticos ou imperialistas no cenário internacional, nos deixam de queixo caído. Certamente, nenhum deles jamais se igualou em poderio ao que um dia foi o Império Britânico, que chegou a dominar direta e indiretamente quase 80% das terras do planeta (com exceção da própria Europa) durante boa parte do século XIX.
Em História, porém, nada é inteiramente indiscutível, embora o cuidado com os negacionismos deva ser sempre uma bússola para qualquer historiador. A Monarquia britânica deve ser criticamente encarada (assim como todos os regimes de poder), mas suspeito que Elizabeth II pareça muito mas ter sido um sinal dessa possibilidade crítica do que uma simples herdeira de um legado condenável.
Assumiu o trono por um detour histórico, causado pelo tio que não desejava carregar o fardo da realeza, e ao contrário de Eduardo VII, encarou o dever de Chefe de Estado impecavelmente, criando, como nenhum outro monarca um reinado do possível, que comemorou neste ano o seu Jubileu de Platina. Conseguiu com sua discrição e austeridade construir-se como estadista, sem deixar-se infectar pelo populismo típico da sociedade de massas, que começava a dar seus primeiros sinais no mundo do pós-guerra. Ainda como Princesa, serviu como mecânica de carros durante a Segunda Guerra Mundial, impondo-se como mulher em um mundo tradicionalmente marcado por homens.
Assumiu o trono como uma jovem mulher, em um país onde as mulheres exigiam nas ruas, já no ano de sua Ascensão ao trono, equidade salarial com os homens. A simbologia de sua chegada ao “poder” foi uma poderosa nota que se somava a sinfonia de protestos de mulheres em toda a Grã-Bretanha, e tornou-se um divisor de águas nas relações de gênero inglesas.
Como Monarca Constitucional não tinha nenhum poder decisório direto nas mãos, mas tornou seu poder simbólico uma força criadora e construiu a Commonwealth, uma das maiores integrações regionais que o sistema internacional já testemunhou. Empenhou-se pessoalmente na legitimidade da esquerda no Parlamento e no Governo, quando esta chegou ao poder por meio das eleições, e soube enfrentar de forma discreta, mas firme, conservadoras como Margaret Thatcher, quando esta se opunha à agenda internacional da comunidade que construiu, com um toque ao mesmo tempo pessoal, embora desprovido de qualquer personalismo, típico de políticos de ocasião.
Por aqui, Elizabeth II fez questão de fazer-se presente, quando os canadenses decidiram criar sua própria Constituição em 1982, sendo o Canadá o país da Commonwealth que mais visitou, vindo por essas terras por 22 vezes. O legado colonialista funesto que pesa sobre sua coroa nunca neutralizou a capacidade política de Elizabeth II, que estreitou laços com Michelle Obama, ou quando exigiu que nas comemorações dos 600 anos da Catedral de Manchester um coral LGBTQIA fosse a principal atração na solenidade, além de quase um bilhão e meio de libras esterlinas, que com sua imagem diretamente empenhada ajudou a arrecadar para mais de 600 ações de combate à pobreza e insegurança alimentar na Commonwealth, enviando inclusive fundos monetários pessoais da Coroa ao Nepal, quando do terremoto de 2015.
Georgie Girl e as bichas do Woddy’s, dentre as quais me incluo, cantaram e choraram essa Elizabeth II e sua personalidade única e radiosa. Não havia entre nós naquela tarde um único viado idiota sequer, que ignorasse todos os problemas que o imperialismo britânico (e tantos outros) causaram pelo mundo. Éramos todos boiolas espertos, que sabiam entender a Rainha pelo que ela conseguiu ser, apesar de tudo o que herdou: uma monarca para além da Monarquia.
REFERÊNCIAS:
McCAIN, Margaret. Royal Progress: Canada’s Monarchy in the Age of Disruption. Dundum Press, 2020.
JACKSON, D. Michael. The Canadian Kingdom: 150 Years of Constitutional Monarchy. Idem, 2018.
SMITH, David & McCREERY, Christopher. Canada's Deep Crown: Beyond Elizabeth II, The Crown's Continuing Canadian Complexion. University of Toronto Press, 2021.
JOLL, James. Europe, since 1870. Penguin Books, 1999.
*André Sena é historiador (UERJ).
Maravilhoso artigo. Parabéns pelo trabalho.