Toronto, 16 de outubro de 2022.
André Sena*
Muito se conhece sobre a obra diplomática de Rio Branco, a quem convencionou-se chamar de patrono da diplomacia brasileira, título ao que fez jus o Barão, que já na adolescência secretariava o pai nos despachos da diplomacia imperial. O desenvolvimento intelectual de Paranhos deu-lhe gradualmente aquilo que seu biógrafo, Rubens Ricúpero, chamou de “ume certa ideia de Brasil”, expressão emprestada de um discurso de Charles de Gaulle ao referir-se à França.
Não restam dúvidas que do Império à República, Rio Branco nos serviu, seja como cônsul brasileiro em Liverpool, seja como nosso mais célebre chanceler, dedicando-se até seus últimos instantes de vida a construção de uma inserção possível e ao mesmo tempo autêntica do Brasil no cenário internacional: do ministério ao cemitério, é o que se dizia de Paranhos, ao falar-se daquele que estabilizou nossas controvérsias fronteiriças, reorientou a claudicante vocação regional brasileira, dando-lhe a firmeza que durante a Monarquia jamais tivera, lançando as bases de relações diplomáticas com a Argentina de forma inédita na história do país.
Entretanto, como se vê com certa frequência em política, e com muito mais intensidade nas relações internacionais, tudo pode acabar dependendo da continuidade daquilo que se planta. É inegável a importância de se lançar novas fundações, pretender novos caminhos, reorientar a diplomacia de um país de dimensões continentais como o Brasil. Contudo, é na sequência dos anos, na capacidade de manutenção e continuidade daquilo que se considera acertado, conveniente, propício, que se encontra de fato o sucesso daquilo que inicialmente buscou-se encaminhar.
Crédito da imagem: Alamy.
Lauro Severiano Müller, a quem coube a imensa responsabilidade de suceder ao Barão do Rio Branco, exerceu com precisão esse papel, enquanto serviu à chancelaria brasileira entre os anos de 1913 e 1917, buscando em sua gestão fortalecer o projeto montado cuidadosamente por seu predecessor, a fim de modernizar e ao mesmo tempo ressignificar o papel brasileiro na política internacional.
Entusiasta da República que ajudou a proclamar (era ajudante de ordens de Deodoro no 15 de Novembro), tinha na figura de Benjamin Constant, de quem era aluno em 1889, uma de suas grandes fontes de inspiração. Sua carreira política intensifica-se com a chegada do regime republicano ao Brasil, acompanhada de todas as turbulências que as primeiras décadas da República trouxeram. Combateu os federalistas no Sul e ajudou a debelar a revolução, que naquele momento buscava retomar o sonho radical de certas oligarquias, que datavam de um passado quase distante.
A atuação de Lauro Müller no Ministério das Relações exteriores deu a ele um destaque que o descolou dos dois presidentes a quem serviu, tanto de Hermes da Fonseca quanto de Venceslau Brás. Sem medo das pressões políticas que o cercaram durante todos os anos de sua atuação como chanceler (inclusive por suas origens imigrantes), Müller entendia que havia finalmente chegado a hora de o cenário europeu dar lugar ao americano (em sua gigantesca potencialidade continental) no tocante às prioridades da política internacional brasileira. A vocação diplomática cultivada pela monarquia brasileira na direção das cortes da Europa durante todo o século XIX já não fazia mais sentido, e o Brasil republicano ecoava o discurso de Quintino Bocaiúva de 1870: “somos da América!” Já em 1912, antes de tornar-se chanceler, Müller foi o principal articulador diplomático da missão brasileira em Buenos Aires, orientando o próprio presidente Campos Salles nessa direção.
Os mecanismos de integração regional que hoje vem sendo não apenas discutidos nas academias de relações internacionais do mundo inteiro, como sendo implementados ao redor do globo nas suas mais diversas formas de expressão, já encontravam em Lauro Müller um intrépido defensor. Müller insistiu o quanto pode na necessidade de implementar, seguindo a política riobranquista que lhe antecedeu, mecanismos políticos, diplomáticos e econômicos que nos aproximassem de nossos vizinhos imediatos, e não de potenciais aliados no distante outro lado do Atlântico. Para tanto, soube aproximar-se dos Estados Unidos quando julgou oportuno, e ao mesmo tempo demonstrou imensa humildade ao ouvir o aconselhamento de nosso então embaixador em Washington, Domício da Gama. De Domício recebeu a mensagem, que nossas relações com os países sul-americanos deveriam dar-se em um campo arejado e independente das opiniões ou dispositivos diplomáticos norte-americanos. Uma autonomia da qual parecemos hoje cada vez mais nos distanciar, tragicamente.
Essa vocação americanista a qual deu continuidade Lauro Müller nos valeu o famoso Pacto ABC, um dos primeiros consórcios de integração regional na América Latina do século XX. Reunindo Argentina, Brasil e Chile, o pacto consistia em um interessante instrumento para a resolução internacional de controvérsias, com sede permanente em Montevidéu (capital de um país não signatário e, portanto, neutro) em tempos em que o Sistema ONU ainda não existia. Se Rio Branco buscou frequentemente laudos arbitrais internacionais favoráveis ao Brasil, como o Laudo de Berna, por exemplo, o chanceler Müller dava um passo à frente, defendendo a prática de arbitragem internacional ampla, moderna para aqueles tempos, e buscando no âmbito regional e avizinhado o foro apropriado para as resoluções das querelas internacionais brasileiras.
Em momento algum a identidade regional do Pacto ABC assinado por Lauro Müller demonstrou um movimento brasileiro marcado pelo isolacionismo. O posicionamento defendido pelo chanceler acerca da Primeira Guerra Mundial (que lhe valeu insultos de toda natureza!) marcava a voz brasileira em um cenário internacional mais amplo. A neutralidade brasileira, advogada por Müller, foi facilmente confundida por seus inimigos políticos com sua ascendência germânica, e seus detratores fizeram o que puderam para cancelá-lo (cancelamentos já vem de longe) e colocar sua lealdade ao Brasil sob suspeita. O Congresso Nacional não permitiu que o Pacto tivesse validade parlamentar, menosprezando uma engenharia diplomática complexa que teve como seu primeiro arquiteto o próprio Rio Branco. Mas Müller fez o que pode para defendê-lo, deixando nele a sua assinatura como Ministro brasileiro.
Americanismo, regionalismo, aproximação e ao mesmo tempo cuidado com a política externa dos Estados Unidos. Neutralidade em uma conflagração internacional, que pela leitura de Müller não nos dizia respeito, e ao mesmo tempo protestos contra manobras militares internacionais consideradas por ele em franco desacordo com o primado do direito internacional. São esses aspectos que fazem de Lauro Müller um personagem injustamente pouco estudado de nossa história diplomática, ofuscado pelo brilho de Rio Branco. Cabe a nós, historiadores e entusiastas da história brasileira, urgentemente recuperá-lo e discutir seu legado.
REFERÊNCIAS:
RODRIGUES, José Honório. Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945). Ed. Civilização Brasileira, 1995.
RICÚPERO, Rubens. Rio Branco. O Brasil no Mundo. Editora Contraponto, 2000.
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Brasil, Argentina e Estados Unidos. Ed. Civilização Brasileira, 2010.
CERVO, Amado. BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Ed. UnB.
*André Sena é historiador (UERJ).
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