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Foto do escritorLuciene Carris

Curiosidades sobre o Centro: uma rua da cidade

Rio de Janeiro, 20 de maio de 2024.

Luciene Carris*


A expressão "vou à cidade" era comum em conversas de antigamente, porque a cidade realmente se localizava no Centro do Rio de Janeiro. O berço da cidade nasceu ali, configurando-se na região que concentrava o polo administrativo, comercial e financeiro. As principais lojas se encontravam por lá, e com razão, se converteu em um passeio atraente para muitos cariocas durante um bom tempo. É bem verdade que a região caiu no ostracismo e no abandono, e a pandemia do coronavírus acabou por esvaziá-lo, pelo menos, espero, temporariamente. Afinal, um sopro de renovação surgiu nos últimos anos, e quem sabe o Centro retome a vivacidade de outrora.



Rua do Senado e Adjacências, Juan Gutuierrez, 189?. Crédito da imagem: Brasiliana Fotográfica. Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/6261 Acesso em: 15 mai. 2024.


Há aproximadamente sete anos, meus pais se mudaram para um prédio construído na década de 1970, próximo ao renomado Colégio Cruzeiro. Trata-se de uma escola alemã que tem uma longa história de mais de 160 anos de atuação na cidade do Rio de Janeiro. Ao visitar a casa dos meus pais, sempre me chamou a atenção o casario antigo, a proximidade com a Praça da Cruz Vermelha, o vaivém de moradores, os bares e as feiras.


A Rua do Senado não é uma rua muito extensa, se compararmos com outras adjacentes. Ao buscar maiores informações sobre a Rua, constatamos que Brasil Gerson não considerou um verbete específico sobre a sua história no clássico Histórias das ruas do Rio, apesar das menções pontuais em outros verbetes sobre as ruas do Rio. De todo modo, o logradouro escolhido se inicia na Rua do Lavradio, inaugurada em 1777 com intuito de abrir um caminho entre os Arcos da Lapa e o Largo do Rocio (atual Praça Tiradentes). No entanto, quando inaugurada no final do século XVIII, a estrada conectava somente a Rua Espírito Santo (atualmente denominada Rua Pedro I) à Rua dos Inválidos, finalizando no Morro Pedro Dias, nome do Guarda-Mor de Minas Pedro Dias Paes Leme, proprietário de várias propriedades na região, passou a ser conhecido posteriormente como Morro do Senado. Vale recordar que existia no trecho da Rua Riachuelo, situado entre as atuais Rua do Senado e Avenida Henrique Valadares, a Lagoa da Sentinela ou Lagoa do Capueruçu, habitada pelos tupis, que foi devidamente aterrada, desaparecida da paisagem carioca.



Rio de Janeiro, do lado da terra, tomada do Morro do Senado, Eugéne Ciceri, 1852.

Crédito da imagem: BN Digital. Disponível em: https://shre.ink/rbTI Acesso em: 10 jan. 2024.

 


A Rua do Senado se encerra na Rua do Riachuelo (antiga Rua de Matacavalos), onde observamos ali em frente a Escadaria da Ladeira do Frei Orlando, originalmente apelidada de Ladeira do Senado, que leva ao Morro de Santa Teresa. Embora não seja tão famosa quanto a Escadaria Selarón, localizada na Rua Joaquim Silva, a Escada da Ladeira do Frei Orlando, em homenagem ao religioso falecido durante a Segunda Guerra Mundial, anteriormente se chamava antiga Ladeira do Senado. A Ladeira se destaca por seu encantador mosaico de azulejos e espelhos construída pelo morador Luiz Henrique em 2014, lá podemos ainda encontrar um pequeno oratório devotado a N. S. de Fátima no alto da Escadaria. Aliás, a Rua do Senado já foi nomeada de Rua do Resende em homenagem ao Vice-rei responsável pela sua criação. 



Escada da Ladeira Frei Orlando Crédito das imagens: Olhos de Ver.

Disponível em: https://olhosdeverrj.com.br/?p=2022 Acesso em: 10 jan. 2024.


Sobre o nome do logradouro, há menções de que o Senado da Câmara, como era conhecido o Conselho Municipal da época, decidiu renomear uma via mais importante com o nome de Rua do Resende, em maior homenagem ao Vice-rei, José Luís de Castro Resende (1744-1819), o segundo Conde de Resende, que foi nomeado o 13º vice-rei do Brasil em 1789. Com a concordância deste, a primeira via teve seu nome alterado para Rua do Senado, em reconhecimento ao colegiado que auxiliou tanto na abertura da rua quanto no saneamento da área. Em 1884, a rua passou a ser chamada de Rua Senador Bernardo de Vasconcelos, mas retornou ao seu nome tradicional, Rua do Senado, por decisão da Câmara Municipal em 1892.



Rua do Senado com destaque em amarelo. Crédito da Imagem: Google Maps.



Vale ainda acrescentar a relação entre a Rua do Senado e o Morro do Senado. Aliás, o "arrasamento" do Morro do Senado, que começou em 1880 e se estendeu até 1906 da administração de Pereira Passos, tinha como objetivo a urbanização da área, dando lugar à Praça da Cruz Vermelha e às ruas adjacentes, a exemplo da abertura da Rua Mem de Sá, os entulhos provenientes da remoção do morro serviram para aterrar charcos e mangues dos bairros da Saúde e da Gamboa, e para as obras de aterramento do novo porto. Tal transformação visava também à geração de lucro com a venda dos terrenos criados na futura Esplanada do Senado e em áreas aterradas. Ao contrário do que ocorreu no Morro do Castelo, erradicado da paisagem durante a gestão do prefeito Carlos Sampaio em 1922, o Morro do Senado era praticamente desabitado, porém sua demolição visava gerar lucros através de especulação com a abertura de uma esplanada.



Crédito da Imagem: BNDigital.

Disponível em https://encurtador.com.br/kAQ67 Acesso em 10 jan. 2024.


Com a reforma urbana de Pereira Passos, o antigo Colégio Cruzeiro, que se localizava na Rua do Rezende, foi transferido para um terreno entre as Ruas Carlos de Carvalho e do Senado. Com isso, a escola foi inaugurada em 1912 antes da criação do Hospital da Cruz Vermelha em 1923.



Crédito da Imagem: Perfil Mapas do Rio Antigo.


A rua, carregada de história, reflete as mudanças da cidade, desde seu passado colonial até a modernidade, o que pode ser notada com a construção do Centro Empresarial Senado, uma estrutura moderna que, apesar de representar inovação, contrasta com a arquitetura histórica local, evidenciando a complexidade entre os interesses econômicos e o patrimônio cultural.


Uma arquitetura imponente contemporânea que reacende reflexões sobre uma ilusão sobre a modernidade. Ao longo dos anos, a Rua do Senado sofreu várias transformações, tornando-se um importante centro comercial e político da cidade, eventualmente, um ponto de importância cultural para o Centro do Rio de Janeiro. Um breve passeio pela Rua do Senado revela o contraste entre o antigo e o novo na paisagem urbano do Rio de Janeiro.



Desmonte do Morro do Senado, s. autoria, 1905. Crédito da imagem: Memória da Eletricidade, Acervo Light. Disponível em:https://acervolight.riomemorias.com.br/explore/1624/1749 Acesso em: 15 mai. 2024.



Ao flanar pela Rua do Senado, é possível admirar várias construções históricas e uma diversidade de comércios locais, como uma oficina especializada em automóveis clássicos. Cruzando a Rua Mem de Sá, encontramos a histórica Panificação Mandarino, conhecida pela produção do famoso Biscoito O Globo, que se converteu ao lado Mate Leão como os icônicos lanches consumidos nas areias das praias por muitos turistas e cariocas, desse modo, carrega em si uma carga cultural e histórica, não é só um bem de consumo.


Além disso, passamos novamente pelo mencionado Colégio Cruzeiro, assim como pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado do Rio de Janeiro, estabelecido em 1919 e alojado em um edifício histórico com fachada bem conservada. Seguindo pela Rua 20 de Abril, avistamos a Vidromar Embalagens, uma loja de vidros que em 2016 foi declarada patrimônio cultural carioca e integrada ao Circuito de Negócios Tradicionais do Rio.



Crédito da Imagem: Diário do Rio.


Em seguida, passamos pela parte traseira do Quartel General do Corpo de Bombeiros, inaugurado em 1908, e logo após, a Paróquia Santo Antônio dos Pobres, situada na esquina com a Rua dos Inválidos, data do início do século XIX e sofreu diversas reformas. Após a Rua dos Inválidos, nos deparamos com o histórico Armazém Senado, aberto em 1907 como um armazém de secos e molhados e que hoje é um tradicional botequim carioca, localizado na esquina com a Rua Gomes Freire, atualmente, um point carioca com direito à roda de samba e a uma feira de antiguidades. Seguindo, avistamos os vestígios da antiga Garagem Poula, uma relevante garagem de carruagens do final do século XIX, que parece abandonada, apesar de alguns projetos de revitalização, mesmo tendo sido tombada pelo Departamento Geral do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro em 1987.


Além disso, na Rua do Senado nos deparamos com a fachada do antigo prédio do Laboratório e Fábrica da Pharmácia Granado, inaugurado em 1912, mas que tem origem em 1870. Entre prédios relativamente abandonados e antiquários, chegamos finalmente à Rua do Lavradio famosa pela Feira Rio Antigo, seus antiquários, casas de shows, bares e restaurantes. Não é coincidência que tenha sido designada como patrimônio imaterial do estado em 2021.



Crédito da imagem: Projeto Colabora.


Observo que caminhar pelas ruas vai muito além de um simples ato de locomoção; é uma experiência enriquecedora que nos conecta a história da cidade. Ao percorrer a pé, temos a oportunidade de observar detalhes arquitetônicos, aspectos culturais e dinâmicas urbanas que muitas vezes passam despercebidas quando estamos em veículos. Desse modo, o contato direto nos permite apreciar a arte urbana, as expressões populares e até mesmo a interação entre os moradores, bem como a complexidade das transformações urbanas, sociais e econômicas ocorridas na urbe.


Assim, caminhar pela Rua do Senado constatamos alguns resquícios, detalhes sobre a história de um Rio colonial, a capital do Império e da República até 1960, uma cidade que não parou no tempo, continua a mudar, a se transformar, revelando as complexidades da sociedade carioca e as esferas de poder, os interesses pela manutenção de determinadas construções em detrimento da erradicação de um acidente geográfico, como foi o Morro do Senado, por interesses do capital especulativo, cuja memória resiste em cada fachada de cada prédio centenário e de cada comércio tradicional. Ali o passado continua resistindo no Senado como uma espécie de fantasmagoria benjaminiana do mundo moderno, mascarando diversas camadas que acompanham as transformações urbanas.



Referências:

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009. Disponível gratuitamente em:https://archive.org/details/BENJAMINWalterPassagens Acesso em: 15 mai. 2024.


GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio. Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 2013.


LIMA, Tania (org.). Arqueologia urbana: estudo de uma vizinhança no Rio de Janeiro oitocentista. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/16642/1/9786557290040.pdf Acesso em: 15 mai. 2024.


LLOYD, Reginald (Dir.). Impressões do Brazil no século vinte. Sua história, seo povo, commercio, industrias e recursos, 1913. Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0300g01.htm>. Acesso em: 15 mai. 2024.


Olhos de ver - Patrimônio Historico do Rio de Janeiro. Disponível em: https://olhosdeverrj.com.br/?p=1984 Acesso em: 15 mai. 2024.



*Luciene Carris é historiadora (UERJ).


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