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À deriva ou a brevidade da vida

Rio de Janeiro, 03 de fevereiro de 2022.

Luciene Carris *


Uma das coisas mais difíceis para quem circula pela cidade foi um acontecimento mundial, que ainda reverbera no nosso cotidiano, o surgimento de um estranho vírus mortal numa cidade chinesa em dezembro de 2019, que se espalhou para outras regiões do globo. Em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou de que se tratava de uma pandemia. Medidas preventivas foram anunciadas com intuito de salvaguardar a saúde dos cidadãos como o isolamento e o distanciamento social. Uso de máscaras e do álcool em gel passaram a ser algo corriqueiro, e se tornaram as novas regras do convívio social, impondo uma nova etiqueta. Vidas foram ceifadas com a moléstia, fora as sequelas físicas adquiridas por muitos indivíduos, sem ignorar a saúde mental, além de uma crise socioeconômica que agravou os problemas crônicos da populaçao brasileira como o desemprego.


As cenas das cidades vazias me lembram um desses filmes apocalípticos, que encontramos em algum serviço de streaming. O espaço público tornou-se perigoso (e ainda é, em alguma medida) pela real possibilidade de contágio. Recentemente visitei o Hospital Federal da Lagoa por motivos de força maior. Ainda sinto a estranheza ao caminhar usando máscara sob o sol nas ruas do Rio de Janeiro, mas é uma necessidade imperativa e inquestionável. Lembro que o ato de caminhar pelas ruas da cidade é um exercício de observação, um modo de “praticar o espaço” e de se apropriar do traçado urbano.



Hospital da Lagoa, 2022. Acervo pessoal.


Considerado, até então, o mais moderno hospital do Rio de Janeiro, o hospital é um edifício de dez andares idealizado pelo quarteto Oscar Niemeyer, Roberto Burle Marx, Athos Bulcão e Hélio Uchôa. As características da arquitetura modernista são destacadas no painel de azulejos azuis e brancos e seus pilares em “V”, recorrentes em diversos edifícios de Brasília.


O Hospital Sul América, da Fundação Larragoiti, que recebeu o nome, posteriormente, de Hospital Federal da Lagoa, demorou cerca de sete anos para ser finalizado, em 1959, devido a uma série de obstáculos. No terreno, localizava-se a Favela Hípica, ao lado da Sociedade Hípica Brasileira, considerado o clube de hipismo mais antigo do Rio de Janeiro.



Hospital da Lagoa, 2022. Acervo pessoal.


Mas ali, havia uma comunidade removida na década de 1960, a Favela da Beira da Lagoa, localizada entre a região do atual Hospital da Lagoa e a Sociedade Hípica Brasileira. Muitos moradores removidos foram para o Conjunto Habitacional Dona Castorina, apelidado de “Balança” pelos moradores, cons­truído pela Companhia de Habitação Popular (COHAB), durante a gestão de Carlos Lacerda como governador do Estado da Guanabara (1960-1965).


A comunidade era considerada um em­pecilho e deveria ser removida pelos poderes públicos, de acordo com os ideais de civilização e da saúde pública. Uma matéria publicada no Correio da Manhã ressaltou positivamente a transformação do espaço. Nas suas linhas “aquele lugar de tristeza e revolta se vai transformando rapidamente numa praça de beleza, arte e recupe­ração” (Correio da Manhã, ed. 18855, 12/09/1954, p. 01).


Aliás, ao redor da Lagoa Rodrigo de Freitas muitas favelas existiam, a maior e mais conhecida era a Favela da Praia do Pinto, localizada entre a Lagoa e o bairro do Leblon, que na verdade era junção de três: Cidade Maravilhosa, Largo da Memória e Praia do Pinto.


É inegável não admirar a arquitetura do hospital e dos seus arredores, como a Lagoa. Também não passa despercebido o entra e sai de pessoas pelo seu portão principal, além de ambulâncias e de carros de funcionários. Apesar da crise sanitária e do insuficiente investimento na área de saúde, o hospital mantém um atendimento exemplar. E assim, sigo pensando sobre uma cidade “vazia”, sobre uma pandemia que parece interminável, sobre os deslocamentos e remoções constantes de tantas populações, sobre o aparente processo de construção, reconstrução e desconstrução do Rio de Janeiro, e, por fim, sobre a brevidade da vida, como apontou o filósofo estoico Sêneca: “breve e agitada é a vida daqueles que esquecem o passado, negligenciam o presente e temem o futuro”. Por fim, me vejo refletindo sobre o que é o tempo para os historiadores, como elemento da narrativa historiográfica e como uma experiência civilizacional e individual (GLEZER, 2002).


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).


Referências:


CARDOSO, Luciene P. C. Histórias do Jardim Botânico: um recanto proletário na zona sul carioca. Rio de Janeiro: Telha, 2021.

GLEZER, Raquel. Tempo e História. Cienc. Cult., São Paulo , v. 54, n. 2, p. 23-24, Oct. 2002. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252002000200021 Acesso em: 01 fev. 2022.

SÊNECA, Lucius Aneus. Sobre a brevidade da vida. Porto Alegre: Ed. LPM, 2008.

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