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Foto do escritorLuciene Carris

Ser negro no Brasil pelo olhar de Milton Santos


Rio de Janeiro, 15 de maio de 2023.

Luciene Carris*


Após a abolição oficial da escravidão no Brasil, em 1888, há 135 anos, quais foram as consequências imediatas para os ex-escravizados? Para onde eles foram? Permaneceram nas antigas fazendas ou buscaram trabalho nas cidades, em ocupações semelhantes às que desempenhavam como escravos de ganho? Além disso, foram adotadas políticas públicas de ressarcimento contra o sistema de trabalho forçado? Houve alguma forma de compensação para os ex-escravizados pelos séculos de exploração e sofrimento?


Parecem perguntas um tanto óbvias para um profissional ou estudante de algum curso da área de Humanas, contudo, recentemente tive a oportunidade de dialogar com um público não acadêmico, e me deparei com respostas superficiais, tipo “chavões explicativos”, sobre o tema da escravidão, tais como “somos todos humanos” ou “não vejo racismo no Brasil, pois a questão é de ordem puramente econômica”, etc. Então, considero como fundamental trazer à baila a reflexão sobre a efeméride “13 de maio”, bem como provocar o debate e a reflexão sobre as consequências da escravidão e como o racismo estrutural permanece arraigado no nosso cotidiano. Não raro os jornais e demais mídias eletrônicas noticiam a tenebrosa situação de muitos trabalhadores brasileiros forçados a trabalhar em condições análogas à escravidão. Além disso, perseguição de negros, abordagens suspeitas e vigilância excessiva em estabelecimentos comerciais como shopping centers e supermercados constituem um fenômeno, que expressa a discriminação racial através de preconceitos, de estereótipos e da marginalização baseada na cor da pele.




Crédito da imagem: Site Milton Santos.


De fato, a vida de muitos negros e negras continuou precária logo após 1888, as ocupações continuaram limitadas e mal remuneradas, tampouco foram criadas medidas efetivas para garantir a integração social e econômica, portanto, os desafios não se atenuaram. A falta de moradia, o acesso restrito à educação, a falta de trabalho digno e de acesso à oportunidade para melhoria de vida contribuíram para o legado de exclusão e de discriminação que se perpetua até os dias atuais, o que impede uma possível reparação histórica ou justiça social na sociedade brasileira, aliás, tema considerado tanto como de intensa controvérsia como desafiador.


Porém, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população negra constitui 75% entre os mais pobres em contraponto à população branca que se encontra entre os 70% mais ricos. Não é necessário maiores reflexões para se constatar que a disparidade dificulta diretamente a mobilidade social e reflete um pensamento racista sistêmico pautado na sustentação de privilégios, o que evidência um quadro de inúmeras resistências. Aliás, convém destacar que a população autodeclarada negra no Brasil é de 54%, assim sendo, é a grande maioria. Desse modo, já passou da hora de significantes transformações. Já que com essa representatividade numérica, é fundamental que as vozes negras sejam ouvidas e atendidas.


Aproveito a oportunidade para homenagear um dos mais importantes intelectuais negros, Milton Santos, cujo aniversário de 97 anos seria celebrado no último 3 de maio. Milton Santos (1926-2001), nascido em Brotas de Macaúbas, no sertão da Bahia, foi um renomado geógrafo, escritor, advogado e professor universitário, reconhecido internacionalmente pelo seu pensamento crítico sobre urbanização e globalização, entre outros temas, sendo agraciado, inclusive, com o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud em 1994.


Desde jovem, Milton Santos enfrentou obstáculos. Sua família desaconselhou sua entrada na Escola Politécnica, pois acreditava que a instituição não acolheria negros com facilidade. Desse modo, ele optou por cursar Direito e, posteriormente, Geografia. Em suas próprias palavras, Milton Santos destacou que a Escola Politécnica não demonstrava interesse em receber estudantes negros. Esse episódio ilustra as barreiras e o preconceito racial que ele, assim como tantos outros, teve que enfrentar em sua trajetória.


Ao retornar ao Brasil no final da década de 1970, após um exílio de treze anos em razão da ditadura civil-militar, Milton Santos se deparou com um momento de abertura política e processo de democratização, no qual a discussão sobre cidadania ganhava relevância também no campo da geografia. A partir de então, se dedicou aos estudos sobre a urbanização no chamado terceiro mundo, as contradições da globalização e as questões relacionadas ao tempo e espaço. Além disso, entendia que a globalização refletia um modelo de cidadania que se pretendia universal, mas negligenciava as particularidades e lutas específicas por cidadania enfrentadas por indivíduos em cada nação. Para Milton Santos, a cidadania plena ainda não havia sido alcançada no Brasil. Em seu lugar, surgia o perfil do consumidor, onde as pessoas eram identificadas e valorizadas principalmente por seu poder de consumo. Nesse contexto, ele destacava a importância do reconhecimento dos direitos para grupos historicamente marginalizados, como negros, mulheres e nordestinos, que foram tipificados, por ele, como "desiguais institucionais". Daí, o seu interesse por uma abordagem mais crítica e inclusiva da cidadania, que levasse em consideração as desigualdades estruturais (Silva, 2010).


Embora alguns estudiosos questionem à atuação de Milton Santos no movimento negro e à extensão de suas abordagens sobre a temática étnico-racial, é importante reconhecer sua significativa presença como um dos poucos professores negros na Universidade de São Paulo até então. Ele desempenhou um papel importante na academia ao expressar suas reflexões nos meios de comunicação dando entrevistas, bem como participou do importante documentário “Encontro com Milton Santos: o mundo global visto do lado de cá” do cineasta Silvio Tendler, mantendo sempre seu rigor crítico característico (Cerqueira, 2010). Aliás, o professor e jurista Silvio de Almeida apontou a importância dos intelectuais negros se engajarem em temas interdisciplinares e transversais para uma visão mais ampla sobre as questões raciais como estratégia para o seu enfrentamento, uma vez que “o racismo conta com o que parece óbvio, que é a ideia de que negros só estão autorizados a falar de racismo. Negros e negras podem falar de racismo, mas não carecem de autorização para falar de outros temas” (RAIMUNDO; JESUS, 2020, p. 255). Nas palavras de Milton Santos:



Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá embaixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da pirâmide social quanto haver "subido na vida". Pode-se dizer, como fazem os que se deliciam com jogos de palavras, que aqui não há racismo (à moda sul-africana ou americana) ou preconceito ou discriminação, mas não se pode esconder que há diferenças sociais e econômicas estruturais e seculares, para as quais não se buscam remédios. A naturalidade com que os responsáveis encaram tais situações é indecente, mas raramente é adjetivada dessa maneira. Trata-se, na realidade, de uma forma do apartheid à brasileira, contra a qual é urgente reagir se realmente desejamos integrar a sociedade brasileira de modo que, num futuro próximo, ser negro no Brasil seja, também, ser plenamente brasileiro no Brasil (SANTOS, 2000).


Referência:


CERQUEIRA, Diogo Marçal. Entre o corpo e a teoria: a questão étnico-racial na obra e trajetória socioespacial de Milton Santos. Dissertação (Mestrado), Instituto de Estudos Socioambientais, Universidade Federal de Goiás, 2010. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tde/1857/1/dis%20diogo%20m%20cirqueira%202010.pdf Acesso em: 05 mai. 2023.

DAGNINO, Ricardo de Sampaio. Milton Santos e a questão do negro e do racismo. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, outubro 2020. Disponível em: https://professor.ufrgs.br/dagnino/book/export/html/6619 Acesso em: 10 mai. 2023.


Entrevista explosiva com Milton Santos. Portal Geledés, 2016. (Publicada originalmente na revista Caros Amigos). Disponível: https://www.geledes.org.br/entrevista-explosiva-com-milton-santos/ Acesso em: 10 mai. 2023.


RAIMUNDO, Valdenice José; JESUS, Dilma Franclin. O racismo na atualidade e o conhecimento como estratégia para o seu enfrentamento. Entrevista com o professor doutor Silvio de Almeida. Revista em Paula, Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1o Semestre de 2020, n. 45, v. 18, p. 254 – 260. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/47194/31992 Acesso em: 05 mai. 2023.


SANTOS, Miltom. Ser negro no Brasil hoje: Ética enviesada da sociedade branca desvia enfrentamento do problema negro. Folha de São Paulo, São Paulo, domingo, 07 de maio de 2000. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0705200007.htm Acesso em: 10 mai. 2023.


SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/sugestao_leitura/sociologia/outra_globalizacao.pdf Acesso em: 05 mai. 2023.


Milton Santos (Site). Disponível em: http://miltonsantos.com.br/site/biografia/ Acesso em: 10 mai. 2023.


SILVA, Rosemere Ferreira da Silva. Trajetórias de dois intelectuais negros no Brasil: Abdias Nascimento e Milton Santos. Tese (Doutorado), Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, Salvador, UFBA, 2010. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/8585/1/Silva.pdf Acesso em: 10 mai. 2023.

*Luciene Carris é historiadora (UERJ).

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