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  • Foto do escritorAna de Melo

Reflexões sobre os indígenas no Brasil e Estados Unidos

Rio de Janeiro, 01 de agosto de 2022

Ana de Melo*


Pocahontas (Owen,1837) e Iracema (Alencar,1865) são dois ícones da literatura norte-americana e brasileira respectivamente. Ambas as obras procuram retratar de uma maneira romantizada os conflitos oriundos das relações estabelecidas entre colonizadores e colonizados na América. A importância histórica dessas obras se dá pelo fato de serem considerados mitos fundadores da nacionalidade estadunidense e brasileira. Tais mitos tiveram grande alcance e podemos arriscar dizer que ocupam o imaginário dessas nações até os dias de hoje. Essas personagens femininas são emblemas do indígena que construiu a nação junto ao europeu, como colaborador e conciliador, seja pela miscigenação ou pela proteção que reivindicou junto ao seu povo para o colonizador. Nessa vertente, suaviza a imagem da colonização genocida e etnocida, que impôs a violência física e cultural.


Através de experiências particulares tais romances buscam deixar a entender que essa interação ocorreu sempre de forma harmoniosa. Entretanto, o sacrifício feito pela mulher indígena, que paga com a vida o nascimento de uma nação, é um estratagema literário que embeleza de uma forma tão grandiosa que esquecemos a crueldade que está sendo retratada. A morte das personagens vai muito além do particular, é a representa da morte de uma cultura de uma forma geral, que através da miscigenação com o europeu cria uma nação civilizada, que ruma ao progresso devendo deixar a cultura indígena somente como símbolo. De acordo com a professora Ria Lemaire, a sedução literária de Iracema como obra de arte, faz com que o leitor sublime os fatos narrados e “a beleza redime a morte, faz com que o sujeito ultrapasse os limites de seu destino individual, se multiplique e eternize em símbolo”[1].



Iracema, José Maria de Medeiros, 1884.

Crédito: Museu Nacional de Belas Artes.


Mas por que romances do século XIX que retratam mulheres indígenas subjugadas são transmitidos até os dias atuais como mitos fundadores? Pocahontas e Iracema são vistos como símbolos indigenistas que permeiam o imaginário contemporâneo. Foram retratadas em diversas obras de arte e Pocahontas virou animação pelos estúdios Disney com a mesma idealização da peça original. Iracema, que alguns autores dizem ser um anagrama da palavra América, é a imagem da pureza e primitivismo delegada aos indígenas, e encontramos essa idealização também nos livros de didáticos. Essa imagem está presente em nosso imaginário e reflete na maneira como vemos os indígenas na atualidade, inclusive nas políticas públicas destinadas a esses povos. A ideia de que desaparecerão conforme o avanço da civilização e os esforços para integrá-los são vistos tanto no Brasil como nos Estados Unidos, refletindo o ideário colonizador que persiste mesmo após os processos de descolonização desses países. Encontramos então uma vertente para responder a pergunta da continuidade e força desses mitos. O grupo dominantemente patriarcal não acabou com a independência desses países, e a propagação desse ideário dos indígenas serve a esse propósito.


Outra vertente para refletirmos sobre a importância de desconstruirmos esses mitos fundadores é analisar os fatos históricos que demonstram o genocídio. Estima- se que ao chegar em território norte-americano, os colonos encontraram cerca de 25 milhões de indígenas, hoje restam um pouco mais de 2 milhões. No Brasil não foi diferente, assegurando as devidas proporções territoriais, a maioria dos estudiosos fecham um consenso de que os portugueses encontraram cerca de 5 milhões de indígenas. Hoje segundo o censo de 2010, realizado pelo IBGE, restam pouco mais de 800 mil.[2] Além do genocídio de proporções continentais, após a colonização o etnocídio continuou em curso. Etnocídio como explica antropólogo Pierre Clastres é a destruição cultural desses povos. Para ele “o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito”[3]. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, o progresso imposto por esses países dentro do sistema capitalista empurrou os indígenas para reservas menores que seus territórios originários, atendendo aos anseios econômicos, como a busca do ouro nos Estados Unidos no século XIX ou a abertura de estradas no Brasil no século XX.


Um exemplo emblemático foi a carta do Cacique de Seattle, em 1854 em resposta a proposta de compra de suas terras pelo presidente dos EUA. A carta ficou conhecida ao ser divulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um pronunciamento em defesa do meio ambiente. O Cacique Ts’ ial-la-kun, vulgarmente chamado de chefe de Seatle, demonstra em suas palavras a relação que os indígenas tem com o território e com os seres que habitam nela. O respeito ao sagrado ancestral e a importância desse sagrado para a própria sobrevivência.


Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhe venderemos a terra vocês devem lembrar e ensinar seus filhos que os rios são nossos irmãos e seus também, e, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que declaram a qualquer irmão[4].


Nesse trecho podemos observar a abertura de diálogo com o outro e a ligação com a natureza . É uma relação de pertencimento, homem é tão importante quanto o rio, o solo, o ar, os pássaros e não uma relação de dominação. E nesse sentido a terra que estão seus antepassados é sagrada para os indígenas e por isso a resistência na manutenção do território original. Logo, podemos perceber a violência cultural ao transferi-los de território como ocorreu tantas vezes no Brasil e nos Estados Unidos.




Batismo de Pocahontas, John Gadsby Chapman, 1840.



A reescrita de estudos sobre a história indígena americana e o debate sobre os indígenas na atualidade são requisições dos próprios indígenas que lutam por seus territórios e pelo direito de viverem conforme suas culturas. É um debate de todos nós! Queremos Iracema, “a virgem dos lábios de mel e com o cabelo mais negros que asa da graúna”[5], do que saber dos suicídios dos jovens Guarani- Kawá ou o abandono de mulheres e crianças nas estradas em busca da sobrevivência diária.


Até quando iremos evocar o indígena do passado em detrimento indígena do presente?


Notas: [1] LEMAIRE, Ria. “Relendo Iracema” in: A mulher e a literatura. Organon. Revista do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1989, V.16, p.270. [2] Segundo o IBGE, são exatamente 8.515.767,049 . Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Área Territorial Brasileira. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/ Acesso em: 10 jul. 2022. [3] CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 56. [4] Carta do Chefe de Seattle. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/desejos/sonhos/seatle.htm Acesso em : 10 jul. 2022. [5] ALENCAR, José. Iracema. Disponível em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/iracema.pdf Acesso em: 10 jul. 2022.



* Ana de Melo é Doutora em história política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

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