Rio de Janeiro, 01 de abril de 2023.
Luciene Carris*
Em 1791, desembarcavam em Lisboa as senhoras Maria da Lapa e a sua filha Joaquina Maria da Conceição Lapa, mais conhecida pelo apelido de “Lapinha” ou “Joaquina Lapinha”, e permaneceram em Portugal até 1805, depois de uma longa temporada. Em terras lusas, Joaquina Lapinha, se apresentou em diversos teatros como o Real Teatro São Carlos, inaugurado em 1793, na cidade de Lisboa, há também o registro de sua passagem pelas cidades de Porto e de Coimbra. Além de ser reconhecida como a primeira cantora lírica, pelo menos com registros em alguns documentos, a sua presença também foi marcante nos palcos como atriz. Não por acaso é considerada a “pioneira na atividade musical feminina no Brasil”, fora dos limites da colônia portuguesa, o que já é uma proeza.
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Não há informações consistentes sobre a sua origem ou aos eventos finais da sua trajetória. Alguns dos seus biógrafos apontam que ela nasceu em Minas Gerais, e creditam essa informação ao desenvolvimento cultural atrelado às possibilidades oriundas da economia do ouro ao longo do século XVII. Com inspiração marcante do barroco europeu, nas cidades mineiras de Ouro Preto (1746), São José Del Rey (1782), Paracatu (1783) e Sabará (1800) foram estabelecidas casas de ópera, e que tiveram como característica de uma marcante presença negra na atividade musical erudita (Bittencourt-Sampaio, 2008, p. 23). Contudo, com a queda da produção aurífera, no século seguinte, muitos artistas migraram para o Rio de Janeiro. Assim, talvez por essa razão, outros estudiosos destacam o seu nascimento por aqui, então capital do Vice-Reino de Portugal desde 1763.
Porém, se alguns dados, aparentemente, foram apagados de sua biografia, a sua cor não foi negligenciada nos documentos, como bem revelou o viajante sueco Carl Israel Ruders (1761-1837), que presenciou a sua atuação nos palcos portugueses no ano de 1800. Sobre o elenco, Ruders destacou que: “A terceira atriz chama-se Joaquina Lapinha. É natural do Brasil e filha de uma mulata, por cujo motivo tem a pele bastante escura. Este inconveniente, porém, remedeia-se com cosméticos. Fora disso tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento dramático” (RUDERS, 2002, v. 1, p. 93-94).
E, assim, o “inconveniente da cor” de Joaquina Lapinha haveria de ser encoberto pelo uso de produtos de beleza, que buscavam dissimular a sua real origem. Porém, além de Lapinha, outros artistas mestiços e negros foram eclipsados da história musical brasileira. De acordo com Sérgio Bittencourt-Sampaio, até 1950 “a inclusão de negros na música erudita constituía um verdadeiro tabu, preservado pelos libretistas, compositores e empresários, uma vez que o mundo ainda mantinha a ideologia preconceituosa, resquício do regime escravocrata nos séculos precedentes” (2008, p. 9).
Somava-se a isto o fato de Joaquina ser uma mulher numa sociedade colonial marcada pela vida religiosa e pelo patriarcalismo, que oprimia e limitava às mulheres ao ambiente doméstico. Como bem ressaltou Joana Maria Pedro e Carla Pinsky, a Igreja teve um papel fundamental, pois “ao desencorajar a participação feminina no mundo da política e do trabalho fora de casa, os religiosos reforçavam a hierarquia existente entre homens e mulheres e o ideal da reclusão feminina” (2002, p. 48). Portanto, o universo das artes era malvisto para as mulheres, e, assim, permaneceu por um longo período. Aliás, o profissional ligado à música não era assim tão valorizado, como bem se observa no relato do naturalista francês Auguste Saint-Hilaire à São Paulo no início do século XIX.
Foi representado o Avaro e uma pequena farsa. Os atores eram todos operários, a maior parte mulatos; as atrizes, mulheres públicas. O talento destas últimas corria parelhas com a sua moralidade; dir-se-iam fantoches movidos por um fio. A maior parte dos atores não era também constituída por melhores comediantes, entretanto, não se pode deixar de reconhecer que alguns deles possuíam inclinação para a cena (Saint-Hillaire, p. 196).
A viajante britânica Maria Graham, que esteve no Rio de Janeiro também pela mesma época, por sua vez, destacou o empenho de tais artistas e a sua participação na cultura musical do início dos Oitocentos. Na sua opinião,
Os negros e mulatos têm fortes motivos para esforçar-se em todos os sentidos e serem, por consequência, bem-sucedidos naquilo que empreendem. São os melhores artífices e artistas. A orquestra da ópera é composta, no mínimo, de um terço de mulatos. Toda pintura decorativa, obras de talha e embutidos são feitos por eles; enfim excedem em todas as artes de engenho mecânico (Graham, 1956, p. 220).
É bom recordar que a entrada de estrangeiros nas terras ultramarinas de Portugal só foi por permitida depois de 1808, até então o pacto entre a metrópole e as suas colônias vigorou. Tal acordo não permitia o estabelecimento da imprensa e de universidades, entre outras atividades. Apesar disso, havia uma vida cultural, ainda que menos suntuosa que a existente na Europa. No Rio de Janeiro, por exemplo, em 1767 foi criada a Casa da Ópera de um certo Padre Ventura, que recebeu outros nomes como: Ópera dos Vivos, Casa da Ópera da Velha e Casa do Padre Ventura. Alguns anos depois, em 1776, o Teatro de Manuel Luiz, que também foi nomeado de Ópera Nova, Nova Casa da Ópera, Nova Ópera e Casa de Ópera de Manuel Luiz (Dias, 2012, p. 45).
Na verdade, segundo pesquisas recentes o Padre Ventura se chamava Boaventura Dias Lopes, era negro, e se destacou como um empresário e maestro. Vale ainda uns parêntesis, uma vez que a denominação de casa de ópera era ambígua, pois poderia ser considerada como um teatro com a capacidade para 350 a 400 pessoas. Retomando a nossa personagem Joaquina Lapinha, há o registro de sua atuação no Teatro de Manoel Luiz, e o seu envolvimento com o poeta árcade Manuel Inácio da Silva Alvarenga, pois se constatou ter sido a herdeira e testamenteira dos bens do poeta (Leewven; Hora, 2012).
Joaquina Lapinha legou uma importante contribuição à música brasileira como soprano negra no período colonial. O sucesso lhe abriu portas para que tivesse autorização para cantar em terras lusas, extrapolando o território colonial. Não raro ocupou o espaço dos tradicionais castrati, aqueles cantores que possuíam a extensão vocal feminina, tão em voga em Portugal, mas que chegaria por aqui em 1808 com a vinda da Corte portuguesa. Até então, se representava as obras de Antônio José da Silva, a exemplo de Os encantos de Medea. Aliás, Silva, que recebeu a alcunha de o “Judeu”, teve um fim trágico por ordem do Santo Ofício em 1739.
Através do repertório de Joaquina, também, é possível observar as influências italianas no teatro e na música em Portugal, que eram importadas para a colônia, como as óperas dos compositores italianos Giovanni Paisiello (1740-1816), Domenico Cimarosa (1749-1801), Fortunato Mazziotti (1782-1855), do lusitano Marcos Portugal (1762-1830) e do afro-brasileiro José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Além disso, podemos compreender a complexidade das relações sociais numa sociedade pautada pela hierarquização e pela violência da escravidão, bem como a busca pela ascensão social de negros e mestiços através da arte em detrimento do trabalho compulsório. Não por acaso, ainda, podemos vislumbrar quantas “Lapinhas” perdemos ao longo da nossa história em razão do preconceito, do apagamento de seus registros e das suas trajetórias, que estão sendo cada vez mais revelados a partir de novas pesquisas originais.
Mas, o seu registro não ficou em branco. Em 2014, o musical "Lapinha" foi aos palcos do Rio de Janeiro, tendo como protagonista a atriz Isabel Filardis. Além disso, no mesmo ano, foi homenageada pela escola de samba G.R.E.S. Inocentes de Belford Roxo com o enredo "O Triunfo da América: o canto lírico de Joaquina Lapinha", criado por Fran Sérgio, com o trabalho do carnavalesco Wagner Gonçalves, na voz de Ciganerey:
Hoje os tambores anunciam Tão belas notas que me guiam Da pioneira voz de um lugar Herança lições culturais Viajam com seus ancestrais Liberta a luz da razão em cordas vocais Reluz feito oração, um esplendor a sua música Unindo o piano ao tambor Forjando um futuro de paz A margem que se revelou O encanto se faz
Desfrutando talento, venceu preconceito Cobrou seu direito, superou desafio Seguiu seu destino, mostrando ao mundo O valor de uma mulher (aplaudida de pé)
Concerto da lança e a lira Conserto o meu conceito de inspiração A voz de joaquina sai de vila rica E ganha o mundo então Lisboa aplaudiu o sonho brilhou O príncipe ouviu a notícia ecoou Oh! negra mulher Talento vence o preconceito quem diria É inocente a magia no ritual de louvação Na ópera do povo eu quero ser feliz de novo O seu triunfo agora no meu coração
Mulata da lapa sua voz encantou Meu samba é uma linda sinfonia Bateria tocou na cidade do amor Esse é o tom que contagia
Referências:
BITTENCOURT-SAMPAIO, Sérgio. Negras líricas: Duas intérpretes negras brasileiras na música de concerto (séc. XVIII-XX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
DIAS, José. Teatros do Rio do século XVIII ao século XX. Rio de Janeiro: Funarte, 2012.
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. Disponível em: https://bit.ly/3nxSoJA Acesso em: 31 mar. 2023.
LEEWVEN, Alexandra van; HORA, Edmundo. Joaquina Maria da Conceição da Lapa [LAPINHA]. Dicionário Bibliográfico Caravelas do CESEM, Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, 2012. Disponível em: https://dicionario-biografico.caravelas.fcsh.unl.pt/node/84 Acesso em: 31 mar. 2023.
PEDRO, Joana Maria; PINSKY, Carla Bassanezi. Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
RUDERS, Carl Israel. Viagem em Portugal (1798-1802). Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002. V. 1. Disponível em: https://bit.ly/3Kof3kD Acesso em: 31 mar. 2023.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de São Paulo. Resumo das viagens ao Brasil, Província Cisplatina e Missões do Paraguai. V. 2. São Paulo: Livraria Martins, 1946. Disponível em: https://ia902800.us.archive.org/9/items/viagemprovinci00sainuoft/viagemprovinci00sainuoft.pdf Acesso em: 31 mar. 2023.
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
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