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O que o 13 de maio não libertou


Guarulhos, 15 de maio de 2023.

Luzimar Soares*



O passado não está apenas no passado: ele constitui nossa sensibilidade

e continua de certa forma, como veremos, a ser presente.

José Carlos Rodrigues.



Não sou estudiosa do fim da escravização de pessoas negras no país, bem como também não sou especialista no processo que comercializou, escravizou, subjugou, torturou e destruiu pessoas por mais de três séculos. No entanto, gostaria de falar sobre um dos aspectos que perdura até nossos dias, num contínuo que parece não ter fim.


Os acontecimentos históricos, ou mudanças históricas não irrompem da noite para o dia, tampouco, encerram-se no dia de seus acontecimentos e é a respeito dessa continuidade que gostaria de escrever no dia de hoje. O treze de maio de 1888, ou melhor, o escravismo bate à nossa porta sempre. De uma forma ou de outra, pessoas negras são insultadas, achincalhadas, diminuídas, e pasmem, continuam sendo escravizadas.



Crédito da imagem: Freepik.


Falar sobre esse tema traz bastante dor, dor está causada pela humanidade que carrego e por querer ver um mundo menos cruel. Todavia, quero partir de um outro lugar, o lugar da mulher negra. E por que partir desse ponto? Porque a mulher já é o outro do outro. Poderia elencar aqui uma série de razões para justificar essa afirmativa, mas vou me ater ao fato de há poucos dias, mulheres que são deputadas federais votarem contra o Projeto de Lei 1085/23, que exige pagamento igual para homens e mulheres quando exercendo a mesma função, como prevê a Constituição.


E, por quê, falar da mulher negra? Historicamente a mulher negra na maioria dos países ocidentais, esteve sempre relegada ao lugar da empregada. Obviamente que existem exceções, algumas mulheres negras se destacaram em suas áreas de atuação, no entanto, mesmo aquelas que se destacaram de uma forma ou de outra, foram ofuscadas. A estudiosa Angela Davis em Mulheres, Cultura e Política, (1994), faz um estudo minucioso a respeito da condição da mulher negra e de como é urgente uma junção dos movimentos e a compreensão de que a violência sexual está altamente ligada ao poder racial.



Se nós não compreendermos a natureza da violência sexual como sendo mediada pela violência e poder raciais, classistas e governamentais, não poderemos ter esperança de desenvolver estratégias que nos permitam um dia purgar nossa sociedade da violência opressiva misógina.


De modo a escancarar a fragilidade da mulher negra nos Estados Unidos, Angela Davis mostra estudos onde mulheres negras americanas sofrem violência sexual duplamente, por agressores civis e depois por militares que deveriam protegê-las, estupram-nas novamente e as largam à própria sorte. O trecho que reproduzirei abaixo é longo, todavia tem a intenção de trazer exatamente o resultado das pesquisas da autora.



A experiência dos anos de 1970 demonstra que as estratégias antiestupro que dependem, sobretudo, das agências de aplicação da lei continuarão a deixar de lado muitas mulheres de minorias étnicas. Na verdade, a vivência das mulheres negras tem sido a de que exatamente os mesmos policiais brancos encarregados de protegê-las dos estupradores e de outros criminosos às vezes irão tão longe a ponto de estuprar as mulheres negras sob sua custódia. Anne Braden, uma militante veterana dos direitos civis, mencionou essa conduta de policiais brancos do Sul que prenderam ativistas negras durante a luta pelos direitos civis e depois as estupraram. Eu recordo uma experiencia que tive com uma aluna de pós-graduação em San Diego, quando eu e uma amiga encontramos uma jovem negra, espancada e ensanguentada, no acostamento de uma rodovia. Ela havia sido estuprada por vários homens brancos e jogada às margens da estrada. Quando os policiais a encontraram, também a estupraram e a deixaram na rodovia, quase inconsciente. Uma vez que casos assim não são, de forma alguma, isolados, as mulheres negras consideram extremamente difícil aceitar policiais como agentes de medidas antiestupro.



Acredito não ser exagero dizer que a violência contra a mulher acontece em todos os países em maior ou menor grau, e cresce à medida que os poderes são mais conservadores e se consideram tradicionais, bem como, em países teocráticos de maneira geral a mulher é relegada a simples objeto do homem. Não é necessário pesquisar muito para encontrar vídeos de mulheres sendo açoitadas em praça pública como punição por terem desobedecidos normativas de cunho religioso ou comportamental.


Todavia quando falamos da mulher negra, a violência pode ter outros contornos. Ainda na atualidade, vivenciamos casos de assedio racial, racismo, agressões verbais e seguranças seguindo mulheres por lojas para ter certeza de que elas não se apropriarão de coisas. No início desse mês, uma mulher foi vítima de racismo em Salvador. Salvador que é a capital com o maior número de pessoas negras do país. Em um trecho que a agredida gravou, sua agressora diz: "Eu não gosto de gente escura que nem você. Eu odeio preto, não suporto".

Nesse mesmo lugar, a mulher ainda se diz “caucasiana”, como uma forma de demonstrar superioridade sobre a outra. Talvez aqui seja possível fazer um diálogo com Frantz Fanon em seu estudo intitulado: Pele negra, máscaras brancas, ele diz:


Mas é preciso ir mais baixo. Você está num café em Rouen ou em Strasbourg, e por azar é abordado por um velho bêbado. Logo que está sentado à mesa: “Você africano? Dakar, Rufisque, bordéis, mulheres, café, mangas, bananas...”. Você se levanta e vai embora e é saudado por uma chuva de injúrias: “Preto sujo, você não bancava o importante lá no seu mato”. [...] No caso do negro, nada é parecido. Ele não tem cultura, não tem civilização, não tem “um longo passado histórico”. Provavelmente aqui está a origem dos esforços dos negros contemporâneos em provar ao mundo branco, custe o que custar, a existência de uma civilização negra.


Embranquecer a si mesma para subjugar o outro, o eugenismo disseminado no começo do século passado também deixou seus tentáculos. A mulher negra foi ama de leite no período da escravização e, ainda hoje, é atacada em cafés apenas pela cor da sua pele. Para encerrar, Ângela Davis faz um convite:


“Imaginem, na verdade, um mundo sem sexismo. Imaginem um mundo sem homofobia. Imaginem se nós vivêssemos em um mundo sem racismo”.

Quem sabe assim, finalmente seremos libertas.



Referências:


DAVIS, Ângela. Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2017.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

G1 BA. Mulher é vítima de racismo em Salvador e filma ofensas ditas pela suspeita: 'odeio preto, não suporto. G1 BA, Globo, 07 mai. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/05/07/mulher-e-vitima-de-racismo-em-salvador.ghtml . Acesso em: 12 mai. 2023.

RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.


*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).

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