Rio de Janeiro, 11 de março de 2024.
Carlos Eduardo Pinto de Pinto*
Que o Oscar é uma premiação política e marcada pelas exigências da indústria, todo mundo sabe. Somente espíritos mais puros ainda acreditam que filmes e profissionais recebem um prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas apenas por mérito. Então, por que será que milhares de pessoas ainda se sentam em frente a uma tela para acompanhar a cerimônia de entrega dos prêmios, como eu mesmo fiz nessa noite de 10 de março? Talvez porque a cultura da concorrência seja tão poderosa que, mesmo sabendo que o jogo é comprado, a gente ainda ache que vale a pena torcer por alguém. E, apesar da perspectiva crítica aguçada, não resista a ver profissionais que admiramos subirem ao palco e emplacarem um discurso emocionado e politicamente engajado.
Quando coloco em xeque os prêmios, não estou dizendo que não haja qualquer valor neles: é difícil que algum trabalho totalmente desqualificado chegue a concorrer e, mais ainda, a levar a estatueta. Por outro lado, é comum que profissionais e obras de muita qualidade sejam “esnobados”, como se costuma dizer, e não levem nada ou sequer concorram. No final das contas, um fator preponderante que atravessa as escolhas é o quanto cada prêmio pode gerar de lucro. Não se deve perder de vista que se trata de uma premiação criada pela indústria para fazer os negócios se movimentarem. Você já deve ter reparado em trailers recheados de expressões como “ganhador/a do Oscar” e “indicado/a ao Oscar”. A “marca” Oscar ajuda a vender, pois é convencionalmente entendida como sinal de qualidade. Logo, muitas vezes a pergunta que embasa a escolha de premiadas/os não é: “quem foi melhor?” e, sim, “quem venderá mais?”.
Esse raciocínio ajuda a compreender por que Gwyneth Paltrow ganhou o Oscar de melhor atriz em 1999, desbancando Fernanda Montenegro. Embora não fosse péssima, a atuação de Paltrow em Shakespeare apaixonado não era tão marcante quanto a da nossa “Fernandona” em Central do Brasil; porém, não é difícil imaginar que, para a lógica industrial, uma jovem atriz estadunidense, já inserida no mercado interno, venderia mais ingressos do que a brasileira veterana, praticamente desconhecida. Mas, se as premiações são votadas por membros da Academia e não pelos chefões da indústria, será que todas as pessoas associadas estão comprometidas com a lógica industrial? Sim, mas não de uma forma maquiavélica: muitas vezes, elas simplesmente votam em quem o lobby indica – por meio de campanhas publicitárias milionárias com investimentos em muitas horas de mídia e, embora proibidos, “mimos” relacionados a filmes ou atuações. Não por acaso, na cerimônia de ontem ficou evidenciada a proibição de mencionar nomes dos publicistas que encamparam as campanhas vitoriosas de alguns/algumas vencedores/as, como no discurso de Da’Vine Joy Randolph, melhor atriz coadjuvante por Os Rejeitados. Neste caso, porém, se trata de uma campanha politicamente engajada, conforme comento a seguir.
Da’Vine Joy Randolph, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante por Os Rejeitados. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/oscar/2024/noticia/2024/03/10/oscar-2024-oppenheimer-e-grande-ganhador-da-noite-com-sete-estatuetas.ghtml. Acesso em 11 mar. 2024
O fato é que nem todo mundo está satisfeito com o modo como as coisas funcionam e é por isso que o Oscar, além de ser estruturalmente marcado por fatores políticos e econômicos, tem se tornado palco de reinvindicações por parte de grupos que historicamente vêm sendo deixados de lado. Voltando à lógica que explica a vitória de Gwyneth Paltrow, não é possível esquecer que a mesma indústria que acredita valer mais a pena apostar em uma atriz jovem estadunidense, não se mostra muito afeita a pessoas com deficiência, latinas, orientais, pretas, indígenas, transexuais, bem como com mulheres em determinadas categorias, como a direção. Diante dessa constatação, diversas campanhas têm forçado a Academia a indicar e premiar esses grupos.
Funciona? Sim, porém com marchas e contramarchas. Por exemplo, se num ano uma mulher é premiada como melhor diretora pela primeira vez na história do Oscar – Kathryn Bigelow por A hora mais escura, em 2013 –, foi preciso esperar 8 anos por outra vitória, a de Chloé Zhao por Nomadland em 2021, sendo também a primeira mulher asiática indicada e premiada na categoria. No total, até hoje, foram apenas 3 mulheres premiadas como diretoras (Pécora, 2024).
Entre as outras categorias, mais pessoas pretas, latinas e orientais têm sido contempladas, no entanto ainda falta muito para se atingir um equilíbrio de indicações e premiações. Só para se ter uma ideia, entre mais de 1000 estatuetas distribuídas desde a primeira edição, o Oscar só premiou pouco mais de 50 pessoas pretas, contabilizando todas as categorias. Apenas 2 diretores pretos – nenhuma mulher – ganharam a estatueta até hoje: Barry Jenkins, por Moonlight e Steve McQueen, por 12 anos de escravidão.
Na edição de 2024, 80% dos indicados foi de pessoas brancas e os outros 20% se dividiram entre pessoas pretas, latinas, asiáticas e indígenas. Apesar da disparidade, essa está entre as edições com mais diversidade nas indicações (Antunes, 2024). Lamentavelmente, as premiações não colaboraram muito para minimizar as discrepâncias, apesar de algumas vitórias. A já mencionada Da’Vine Joy Randolph fez um discurso emocionado sobre a importância de se acreditar em seu potencial, agradecendo às pessoas que disseram que ela, como uma menina preta, poderia ser o que quisesse. ainda que a maior parte da sociedade tentasse lhe convencer do oposto. E Cord Jefferson, vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado por Ficção americana – também dirigido por ele, o filme aborda com humor o tema da representatividade preta nos EUA – seguiu o mesmo caminho, explicitando quanto é fundamental que os produtores tenham dado chance a um homem preto.
Um ponto que chamou a atenção em 2024, desde as indicações, foi a ausência de Margot Robbie na categoria melhor atriz e de Greta Gerwig na direção, ambas responsáveis por Barbie. Além de protagonista, Robbie também é produtora do filme, um imenso sucesso de bilheteria que trata de forma bem-humorada de questões relacionadas ao feminismo, incluindo o tratamento desigual recebido por homens e mulheres na sociedade contemporânea. Com o ocorrido, o Oscar reafirmou a estrutura que o filme critica: enquanto ambas ficaram de fora, Ryan Gosling, que interpreta Ken, o namorado de Barbie, foi indicado como coadjuvante. O fato não passou despercebido e o próprio ator se posicionou na imprensa, dizendo o quanto era absurda tal situação: “Não existe Ken sem Barbie” (Viana, 2024). Na cerimônia, o apresentador Jimmy Kimmel não se furtou a comentar o ocorrido e, enquanto a plateia se manifestava em apoio às colegas, ele lembrou a responsabilidade dos presentes: “São vocês que votam...”. Kimmel também enfatizou que três mulheres dirigiram películas indicadas como melhor filme – além de Gerwig, Justine Triet por Anatomia de uma queda e Celine Song por Vidas passadas, embora somente Triet tenha sido indicada à melhor direção. O prêmio foi para Christopher Nolan, por Oppenheimer.
Na categoria melhor atriz, a disputa foi atravessada por pautas identitárias: as favoritas eram Emma Stone, por sua atuação em Pobres criaturas, e Lily Gladstone, primeira atriz indígena estadunidense indicada na categoria, por Assassinos da Lua das flores. Antes dela, apenas outras duas mulheres indígenas, mas de outras nacionalidades, haviam sido indicadas; e em 1973 uma indígena estadunidense subiu ao palco para receber o Oscar de Marlon Brando por O poderoso chefão, protestando contra a forma como as pessoas indígenas eram tratadas pela indústria cinematográfica (Cetrone, 2024). Por conta da expectativa de uma reparação histórica, as apostas eram de que Gladstone ficaria com a estatueta, mas o resultado surpreendeu e Stone levou seu segundo Oscar para casa (a atriz já tinha sido premiada por La La Land, em 2017). Em termos de mérito, as atrizes estavam empatadas, com duas atuações muito sofisticadas. Mas, no campo da política, os votantes perderam uma excelente oportunidade para fazer justiça.
Botom em prol de cessar-fogo em Gaza, usado por Billie Eilish. Disponível em: https://pbs.twimg.com/media/GIVzbyrXoAAvVxs?format=jpg&name=small. Acesso em: 11 mar. 2024.
Por fim, vale comentar que conflitos bélicos também atravessaram momentos da cerimônia. Ao receber o Oscar de melhor documentário por 20 dias em Mariupol, sobre a invasão russa na Ucrânia, o diretor Mstyslav Chernov afirmou que preferia não ter feito o filme e que a paz vale mais que qualquer Oscar. A Guerra Israel-Hamas apareceu em diversos botons de cessar-fogo usados por alguns premiados, como Billie Eilish – vencedora pela melhor canção –, e nos discursos de Jonathan Glazer, diretor de Zona de interesse, que levou o Oscar de melhor filme estrangeiro, e de Cillian Murphy, melhor ator por Oppenheimer. Enquanto Glazer explicitamente disse que os ataques a Gaza não deveriam ser “banalizados” – uma referência ao tema de seu filme, que aborda o modo como os campos de extermínio nazistas foram tratados de forma normalizada por muitos contemporâneos –, Murphy agradeceu aos pacifistas do mundo. O ator, que interpretou J. Robert Oppenheimer no filme que foi o grande vencedor da noite, disse que ainda vivemos sob o domínio da invenção de seu personagem, considerado o “pai da bomba atômica". Seria um modo polido de se referir ao fato de que o caráter belicista dos EUA não ficou no passado?
Referências
Antunes, Arthur. Oscar 2024: sem diversidade, pessoas negras representam menos de 20% das indicações ao prêmio. Mundo Negro. Disponível em:
https://mundonegro.inf.br/oscar-2024-sem-diversidade-pessoas-negras-representam-menos-de-20-das-indicacoes-ao-premio/. Acesso em 08 mar. 2024
Cetrone, Camila. Lily Gladstone não foi a primeira atriz indígena indicada aoi Oscar; saiba quem são as outras. Marie Claire. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/cultura/noticia/2024/01/quem-foi-primeira-atriz-indigena-indicada-oscar-lily-gladstone.ghtml. Acesso em: 08 mar. 2024.
Pécora, Luísa. Indicadas: as mulheres no Oscar. SESC-São Paulo. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/indicadas-as-mulheres-no-oscar/#:~:text=Apenas%20tr%C3%AAs%20mulheres%20ganharam%20o,um%20intervalo%20de%20onze%20anos. Acesso em: 08 mar. 2024.
Viana, Maria Fernanda ‘Não existe Ken sem Barbie’ diz Ryan Gosling sobre Margot Robbie fora do Oscar. . Estadão. Disponível em: https://www.estadao.com.br/cultura/cinema/nao-existe-ken-sem-barbie-diz-ryan-gosling-sobre-margot-robbie-fora-do-oscar-nprec/#:~:text=Ap%C3%B3s%20sua%20indica%C3%A7%C3%A3o%2C%20Gosling%20se,hist%C3%B3rico%20que%20%C3%A9%20sucesso%20mundial. Acesso em: 08 mar. 2024.
*Carlos Eduardo Pinto de Pinto é historiador e professor de história (UERJ).
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